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postado em: 21/9/2017
Lendo certos posts expostos de forma pública em perfis de alguns companheiros, fiquei a pensar mais uma vez sobre o mau uso das redes pelos crentes, especialmente por adventistas. Não falarei aqui acerca das famigeradas selfies sem noção, da sensualidade escancarada ou das leituras compartilhadas sem reflexão. Falo daquela prática antropofágica dos crentes, criticada por Paulo em sua Epístola aos Gálatas: ”Mas se vocês se mordem e se devoram uns aos outros, cuidado para não se destruírem mutuamente” (Gálatas 5.15). As questões são: O que seria essa prática antropofágica? Como ela se manifesta? Como lidar com esse mal que atinge grande parte dos crentes, dentro do mundo cibernético?
Sobre a "antropofagia" este termo vem da junção de duas palavras gregas: anthropo, que significa "homem", e phagía, que significa "comer". A antropofagia é o ato praticado por antropófagos, definido como aqueles que comem carne humana. Portanto, entre humanos, a antropofagia é mais conhecida como canibalismo, já que o ser canibal é conhecido como alguém que devora a carne da própria espécie.
O termo canibalismo é associado à antropofagia por causa de uma comunidade indígena que habitava a região do Caribe, e que realizava rituais onde a carne humana era consumida. Há indícios de que durante a exploração de Cristóvão Colombo nessa região, os espanhóis ficaram aterrorizados com esta prática e deram o nome de "canibales" (em referência à região do Caribe) aos índios praticantes.
No Brasil, os índios da tribo Tupinambá praticavam a antropofagia como parte de um ritual de guerra. Eles consumiam a carne dos guerreiros adversários com o objetivo de absorver a bravura e coragem do inimigo. Ser comido era considerado uma das formas mais honráveis de morrer, porque significava que o guerreiro era considerado corajoso e tinha o espírito forte.
Embora a prática entre os selvagens tivesse seu valor, nunca foi vista com bons olhos pela civilização. Se o "devorar uns aos outros" não é uma conduta elogiável, na realidade física e social, que diremos quando se aplica à realidade espiritual? A devoração mútua com base em agressões não encontra nenhum elogio, nas Escrituras. Escrevendo aos gálatas, que se digladiavam em mútuas acusações em torno de questões religiosas em seus dias, Paulo afirma que tal prática, semelhante ao canibalismo selvagem, só descortinava uma fatalidade diante da comunidade em conflito: à mútua destruição.
O Comentário Jamieson-Fausset-Brown observa que "morder", neste verso, tinha a ver com as calúnias que eram trocadas entre os gálatas, acerca do caráter de outra pessoa, enquanto que "comer" se tratava de destruir o outro, injuriando ou mesmo praticando extorsões contra ele (Habacuque 1:13, Mateus 23:14, 2Coríntios 11:20). "Destruir", outro termo presente no verso, teria a ver com o acabar com a força da alma, a saúde do corpo, da natureza e dos recursos. Todas estas coisas, diz o comentarista, estavam sendo consumidos nos conflitos entre os irmãos na comunidade da Galácia, atingida pelas ideias de falsos mestres judaizantes. Trazendo para nosso tempo, este é mesmo o perigo que se tem visto, no comportamento dos crentes, no mundo virtual: a vergonhosa exposição de irmãos se devorando em mútuas agressões, como selvagens sem entendimento.
É lamentável, que havendo a possibilidade de uso das redes sociais para a promoção daquilo que temos de melhor a oferecer, que é a beleza das verdades em Cristo, que abraçamos como um povo, nos perdemos em debates sem proveito, gerando exposição desnecessária e até mesmo descrédito para com o evangelho que anunciamos. Falando como um cristão adventista, sinceramente, não vejo proveito algum em voltarmos nossas armas contra o esforço dos próprios irmãos, questionando votos administrativos, orientações oficiais, ou mesmo criticando algum trabalho realizado, de forma pública, diante de outros que deveriam ser cativados para nosso meio.
Um exemplo antigo foi o que ocorreu em 2015, após o voto que negou a ordenação de mulheres, na Assembleia Geral da Igreja Adventista. As redes sociais se tornaram palco de debates e divisões acirradas acerca do tema, cada qual tendo sua pretensão de verdade. No entanto, ignoravam o mais básico: diante de um voto tomado pela comunidade em sua representatividade, de forma oficial, o melhor caminho era preservar a unidade almejada por Cristo, nestes tempos confusos que vivemos (Cf João 17:21).
Quais os motivos dessas atitudes imaturas? O que leva um professo cristão a desenvolver este tipo de contenda? As palavras abaixo, escritas pela Mensageira do Senhor para a Igreja Adventista, deixam abertas algumas possibilidades:
"Digo com tristeza que existem entre os membros de igreja línguas desenfreadas. Há línguas falsas, que se alimentam com a maldade. Há línguas astutas, que segredam. Há loquacidade, impertinente intrometimento, insinuações hábeis. Entre os amantes da tagarelice, alguns são atuados pela curiosidade, outros pela inveja, muitos pelo ódio contra aqueles por meio dos quais Deus falou para os reprovar. Todos estes elementos discordantes estão a trabalhar. Alguns ocultam seus sentimentos reais, enquanto outros estão ansiosos por divulgar tudo que sabem, ou mesmo suspeitam, dos males alheios."(Testemunhos Seletos, vol. 2, p. 22, grifo nosso).
Note bem que a autora não se detém apenas em uma só motivação para esse caso. Ela cita claramente a curiosidade, a inveja, o ódio e até mesmo a ânsia gratuita de divulgar os males alheios, quer seja com base em fatos ou meras suspeitas. Alguns anos antes, quando ainda não havia internet, já haviam tais manifestações contrárias à ordem da Igreja. Contudo, na ocasião, era muito pouca a repercussão, pelo alcance limitado das ideias. Além disso, estas manifestações eram reservadas em sua maioria, aos dissidentes doutrinários que se afastavam da comunhão da Igreja como instituição. No entanto, na atualidade, parece haver mais embates provocados por aqueles que se dizem "dentro" da Igreja, do que por aqueles que se dizem "fora" dela.
Em muitos casos, a inimizade surge em função de discordâncias doutrinárias, geradas pelo individualismo e espírito de independência. Isso é lamentável. Quando uma voz se aparta do discurso conjunto da comunidade de fé, pode se afirmar que nele se encontra o maior sinal de egoísmo e independência, que são a essência do pecado da insubmissão. Ellen White entendia que "somos por natureza egocêntricos e opiniosos" (Mente, Caráter e Personalidade vol. 1, p. 271). Acrescenta que "O egoísmo tem causado discórdia na igreja, enchendo-a de ambição não santificada" (Conselhos sobre Mordomia, p. 24).
Essas declarações se alinham com o resultado de uma pesquisa que envolveu mais de cinco mil funcionários de diversas empresas, em nove países. Ele mostrou que 85% dos servidores consultados já presenciaram algum tipo de conflito no trabalho, sendo que a principal causa apontada foi o "conflito de ego" (aqui).
Em resultado desses "egos" em conflito, quase todo dia surgem novos questionadores, dando luz a novos "debates" sobre questões eclesiásticas internas, em blogs e nas redes sociais. Basta que um novo voto administrativo acerca de determinada postura seja tomado, ou alguma medida recomendada, novas vozes surgem, discursando contra o chamado "status quo". A tentativa velada é sempre desestabilizar a autoridade instituída, embora esteja travestida de falsa piedade. Tiago já dizia dessa hipocrisia quando discursava sobre os males da língua:
" É um mal que não se pode refrear; está cheia de peçonha mortal. Com ela bendizemos a Deus e Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto se faça assim" (Tiago 3:8-10).
Já presenciei no cyber-espaço até mesmo conflitos partidários em torno de medidas disciplinares para com membros faltosos. É perceptível que este tipo de assunto, quando compartilhado, atrai mais adeptos e comentários do que aqueles que promovem esperança e salvação para os povos. Penso que estes embates não atingem a nenhum propósito santo, e neles não há vencedores, só feridos e vencidos. De fato, o que ocorre é o mesmo que no entender de Paulo, atingia os irmãos da Galácia: que estamos nos devorando uns aos outros. E quem vence, no decorrer desses enfrentamentos, é sempre o grande Acusador dos irmãos. A escritora adventista, conselheira do movimento, não deixa dúvidas sobre qual a "força" por traz dessas iniciativas:
“Quando homens se levantam, pretendendo ter uma mensagem de Deus, mas em vez de combaterem contra os principados e potestades, e os príncipes das trevas deste mundo, eles formam um falso esquadrão, virando as armas de guerra contra a igreja militante, tende medo deles. Não possuem as credenciais divinas. Deus não lhes deu tal responsabilidade no trabalho. O Senhor não confere a nenhum homem uma mensagem que desanimará e desalentará a igreja” (Testemunhos Para Ministros, p. 22, 23.)
Creio que o trabalho da igreja como instituição deve ser sempre avaliado, ou mesmo criticado pelos membros - eu mesmo já fiz isso - e há tempo e lugar adequados para isso, mas com certeza, este tempo e lugar não não tem nada a ver com sites não-oficiais ou redes sociais. A comunidade de fé é uma família. Famílias se preservam, não se expõem de forma gratuita, para deleite de desconhecidos ou adversários. Para orientação, deixo abaixo um texto que apesar de tratar de outro contexto, traz princípios relevantes que podem ser usados ao lidarmos com o assunto em destaque.
"Vi que o próprio espírito de perjúrio, capaz de transformar a verdade em falsidade, o bem em mal, e em crime a inocência, está agora ativo. Satanás exulta sobre a condição do professo povo de Deus. Enquanto muitos negligenciam sua própria alma, vigiam ansiosamente por uma oportunidade para criticar e condenar os outros. Todos têm defeitos de caráter, e não é difícil descobrir alguma coisa que a inveja pode interpretar para seu mal. ‘Ora’, dizem esses juízes por iniciativa própria, ‘temos fatos. Far-lhes-emos uma acusação da qual não se poderão livrar’. Aguardam uma oportunidade apropriada e então põem em ação seu feixe de boatos e expõem sua prosa.
Em seu empenho por apresentar um ponto, pessoas que têm por natureza uma imaginação forte, estão em perigo de se enganarem a si mesmas e aos outros. Apanham expressões que outros tiveram em momento descuidado, despercebidos de que as palavras podem ser pronunciadas precipitadamente, não refletindo assim os verdadeiros sentimentos de quem as proferiu. Mas essas observações não ponderadas, muitas vezes tão banais que não merecem atenção, são olhadas através da lente de Satanás, são meditadas e repetidas, até que montículos de toupeiras se transformam em montanhas. Separados de Deus, os suspeitadores do mal tornam-se joguete da tentação. Mal sabem a força que têm os seus sentimentos, nem o efeito de suas palavras. Enquanto condenam os erros alheios, condescendem eles mesmos com erros muito maiores. ‘A coerência é uma jóia.’
Não existe então nenhuma lei de bondade que deva ser observada? Foram os cristãos autorizados por Deus a criticarem-se e condenarem-se mutuamente? Será honroso, ou mesmo honesto, extrair dos lábios de alguém, à guisa de amizade, segredos que lhe foram confiados, e em seguida fazer reverter em seu prejuízo o conhecimento assim alcançado? Será caridade cristã, apanhar todo boato que por aí flutue, desenterrar tudo que lance suspeita sobre o caráter de outro, e então ter prazer em empregá-lo para o prejudicar? Satanás exulta quando pode difamar ou ferir um seguidor de Cristo. Ele é o "acusador dos irmãos". Deverão os cristãos ajudá-lo em sua obra?
Os olhos de Deus, que tudo vêem, notam os defeitos de todos e a paixão dominante de cada qual; contudo, tem paciência com os nossos erros, e compadece-Se de nossa fraqueza. Ele ordena ao Seu povo que nutra o mesmo espírito de ternura e paciência. Os cristãos verdadeiros não exultarão em expor as faltas e deficiências de outros. Afastar-se-ão da vileza e deformidade, para fixar a mente naquilo que é atraente e amável. Para o cristão todo ato de crítica, toda palavra de censura ou condenação, são penosos" (Testemunhos Seletos, vol. 2, p. 22, 23).
Para finalizar, afirmo que não julgo adequado o silêncio de discordantes. Mas creio que o contraditório tem pelo menos três elementos que devem ficar bem definidos, para que dê substância a um discurso: tempo, lugar, e propósito. Observados estes pontos, falas contraditórias sempre serão válidas. E reafirmo: estes três pontos nada têm a ver com o uso das redes.
Aos que têm falhado nesse assunto, vale recordar as sábias palavras do Apóstolo: "Meus irmãos, não convém que isto se faça assim". (Tiago 3:10). [Claudio Sampaio, 2017].