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postado em: 1411/2012
Meu Amigo “Neblina”
Fernando de Almeida Silva
Editor Associado
www.iasdemfoco.net
[email protected]
“Neblina”, em fotografia de 1974.
Neblina é um nevoeiro denso e rasteiro, que se forma devido à condensação da água evaporada, junto à superfície, provocando o resfriamento do ar quente e úmido, ao entrar em contato com o solo frio ou a superfície líquida.
Chamada também de cerração, névoa ou bruma, a neblina pode ser noturna ou diurna, média ou máxima, fina ou grossa. Enfim, é uma nuvem próxima do solo. A única diferença entre a neblina e o nevoeiro propriamente dito, é que a visibilidade da neblina é superior a um quilômetro e, do nevoeiro, inferior a essa distância.
De 1968 (cheguei em 1967) a 1979 estudei no então Instituto Adventista de Ensino – IAE, no bairro Capão Redondo, zona Sul da cidade de São Paulo, em regime de internato. Ali, vários alunos tinham apelido, às vezes, até dois. Isso era comum entre os veteranos, para zombar dos novatos.
Havia apelido de todo tipo e por qualquer motivo. Em muitos casos, bastava um gesto, um olhar, um tipo de roupa, a maneira de andar, a aparência, a voz, qualquer ato incomum que chamasse a atenção, dava origem ao apelido. Era uma brincadeira sadia, apenas por divertimento. Além do mais, sempre havia alunos que se deleitavam com a provocação. E sempre havia, também, uma vítima de cognome gracioso, para deleite dos gozadores de plantão. Até as moças (dormitório III) recebiam apelidos, tanto das próprias moças quanto dos rapazes.
Em forma de apelido, havia de tudo no colégio: pássaros, fenômenos da Natureza, personagens da literatura, do cinema, referências a situações da vida social e a pessoas ainda vivas. E, evocando os fantasmas de Ernest Miller Hemingway (1899-1961), autor de A Moveable Feast (Paris é uma Festa), publicado somente em 1964, que li, e que serviu de inspiração para Woody Allen escrever, produzir e dirigir o filme Meia Noite em Paris, em 2011, para o aluno, colocar apelido no colega era uma festa que durava o ano todo. A vida no internato não seria tão divertida, se não fossem esses gozadores de plantão e os apelidos que, em alguns casos, acompanhavam os alunos, mesmo depois que iam embora do colégio.
De todos os alunos, apenas um não gostava da brincadeira: “Mazzaropi”, alusão ao famoso cômico, ator de personagens caipiras, incluindo o Jeca Tatu (filme de 1963), diretor e produtor brasileiro de filmes ingênuos, Amácio Mazzaropi (1912-1981), pai adotivo de Péricles Mazzaropi, que também estudava no colégio e de quem eu era amigo. Todo domingo à tarde ele ia visitá-lo, a bordo do seu Chevrolet Veraneio azul claro, igualzinho ao do pastor e professor João Stinglin Linhares (o modelo virou depois carro de polícia). Nesse dia, eu ficava conversando com ele e seu filho, debaixo da grande figueira que ainda existe perto do antigo Dormitório I.
“Mazzaropi” nutria ressentimentos pelo cognome que tinha. Mas, não podia brigar com ninguém e correr o risco de ser expulso do colégio. E nenhum aluno queria ser expulso daquela cidadela de refúgio seguro, por cauda de um apelido, que gerava boas gargalhadas. “Mazzaropi”, que também era chamado de “Badalo”, bajulava preceptores, professores e diretores, mas em causa própria, ao denunciar colegas em atos falhos. Mas, no fundo da alma, ele era uma boa pessoa. Tanto é que namorou uma estudante de enfermagem do colégio, ficou noivo e se casou com ela. E a família da noiva, da cidade de Campos (RJ), fez festa e comemorou a façanha.
Os alunos tinham apelidos de todos os tipos: “Gordo”, “Mazarropi”, “Badalo”, “Vovó”, “Chico Bíblia”, “Pedrão”, “Bareta”, “Ali Babá”, “Profeta” (adivinhem quem era?), “Fusquinha”, “Fuscão”, “Brabuleta”, “Cafú”, “Filhinho”, “Velha”, “Peteleco”, “Serjão”, “Dudu”, “Tonhão”, “Bola”, “Tifum” ou “Catifum”, “Milharal” (este eu não conto: É, hoje, presidente de uma Associação Adventista lá do Sul do Brasil), “Tango”, “Juca Fróis”, “Azulão”, “Feijãozinho”, “Senhora Robinson”, “Madame Min”, “Tomate”, “Z... Doido”, “Gansolina”, “Bolinha”, “Torão”, “L... Furacão”, “Vick Vaporube”, “François”, “Deixa Ali”, “Gansolino”, “Emoção Diferente”, “Idi Amin”, “Tripa”, “Fióti”, “Amigo Frank”, além de muitos, muitos outros... Tinha, também, o famoso “Neblina” – motivo das nossas lembranças de hoje.
Para professores, preceptores e diretores, os alunos reservaram os seguintes apelidos: “Ritão”, “Micuim”, “Manelão”, “Ganso”, “Rabelão”, “Pedrinho”, “Modestinho”, “Zebedeu”, tudo no mais querido e harmonioso respeito. Havia uma professora, solteira, muito bonita, e que, mesmo não tendo apelido, era sempre lembrada pelos alunos, por sua beleza e encanto. O sonho de esposa para muitos alunos mais velhos. Mas, ninguém tinha coragem de chegar perto dela e se declarar.
“Neblina” morava na cidade do Rio de Janeiro. Seu nome era Nelson Lombardi, de uma fiel e excelente família da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Em 1974, seu segundo ano no internato, onde estudou durante três anos, cursava o segundo ano do Colegial, e eu, o segundo de Contabilidade. Naquela época, o segundo grau tinha suas variações oficiais: Secretariado, Científico, Colegial Agrupado, Contabilidade e Normal.
O apelido “Neblina” era porque ele tinha o rosto “cinzento”, cheio de penugens, reforçado por sua cor clara, de descendência européia. Seus cabelos eram ruivos e cacheados. Tinha estatura média e peso compatível. Era sério, calado, porém simpático. Poucas vezes o vi sorrir. E, quando isso acontecia, era na roda de amigos mais próximos, principalmente do curso ou do quarto, no dormitório masculino II, onde ficava com mais três colegas. Mas não tomava parte de nenhuma brincadeira de colocar apelido nos colegas ou debochar da aparência deles, como alguns alunos faziam.
No refeitório, na Biblioteca, na Capela, ou saindo da sala de aula, estava sempre sério e de cabeça baixa. E, quando eu passava e o cumprimentava, era correspondido com atenção e cortesia. Ao vê-lo, porém, eu disfarçava e ria de satisfação, por achá-lo mesmo com “cara de neblina”.
Durante os três anos que ficou no internato (1973 - 1975), não namorou nenhuma moça. Chegou e partiu sem nenhuma jovem a ocupar o seu coração, no esplendor da vida e do fervor alegre da juventude, embora moças bonitas e talentosas não faltassem no colégio.
Quando “Neblina” concluiu o curso e foi embora, deixou gratas recordações. Era o ano de 1975. Ele saiu de nossas vidas para entrar no imaginário saudoso das lembranças antigas, que surgem nas horas de melancolia, para nos fazer lembrar como era a vida no internato naquele tempo tão distante, na cidade de São Paulo.
Nunca mais o vi. Nunca mais soube dele. Não sei onde vive e nem como vive, se casou e teve filhos, ou se já morreu. Só sei que a beleza daqueles anos inesquecíveis ainda permanece viva em meu coração, como uma fotografia que o tempo guardou na sublimidade da alma, para mostrá-a a intervalos de tempos, à memória do tempo que passou. Por isso, toda vez que vejo cerração, névoa, bruma ou neblina, na superfície das águas ou na campina verde do vale, lembro-me dos colegas de internato e dos apelidos que eles tinham. E sinto saudade daquele tempo e dos amigos que um dia, na formação de nossas vidas de sonhos, fizeram os sonhos de nossas vidas melhores.
Já se passaram 38 anos. Mas, ainda me lembro do amigo “Neblina” com seu rosto redondo, cheio de penugens brancas, calmo e contemplativo, andando pelas alamedas do colégio, como um solitário na multidão. Sem sombra de dúvidas, era uma excelente pessoa!
Fecho os olhos e procuro encontrá-lo no átrio do mundo das minhas recordações do antigo Instituto Adventista de Ensino (saudoso IAE), como a neblina de outros tempos, sorrindo da noite e da escuridão. Então, olho ao redor, à procura de rostos para recordar, especialmente o rosto redondo e sério do amigo “Neblina”, que o tempo guardou e que, agora, no sussurro de saudade e da voz do coração, sorriu da distância e voltou de lá.