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postado em: 30/6/2014
NO TEMPO DAS INGAZEIRAS
Fernando de Almeida Silva
[email protected]
Editor Associado e Colunista
www.iasdemfoco.net
Parei entre a casa antiga e a curva do leito seco do rio, para recordar os tempos de criança. Onde antes corria água em abundância, agora o mato fazia festa nas areias soltas, em meio a pedregulhos e arbustos ressecados. O rio das minhas recordações não passava mais ali. As enchentes mudaram o seu curso, obrigando-o a passar por outro caminho, a 150 metros de distância.
As ingazeiras, com suas vagens de sementes pretas que cuspíamos nas margens do rio, depois de comer a polpa branca e aveludada, tinham morrido. Era como se eu ainda pudesse ouvir o pedido de socorro da alma invisível do rio, no último suspiro delas. Lembro-me de que elas floresciam até duas vezes ao ano. Aqui e ali, uma buganvília solitária, com suas flores vermelhas, teimava em desafiar o tempo.
Diante daquele cenário desolado e triste, lembrei-me da canção de liberdade dos campos e do sorriso alegre das colinas que deixei no passado, prometendo voltar um dia.
E, agora, eu estava em minha terra natal, diante do que restou da casa antiga onde nasci e diante da curva do rio, para rever o rio, os vales enfeitados de arbustos, de cavalos, de bezerros, de bois, de vacas mugindo e de flores coloridas espalhadas pelos campos, a embriagarem, com seu perfume sutil, o vôo das andorinhas, à caça de insetos voadores.
Eu estava ali mais uma vez, para rever o sorriso das águas e ouvir o soluço das ingazeiras, na escuridão silenciosa da noite, ou na luz-menina do amanhecer, dissipando o orvalho que se formava pelos caminhos. Mas o que eu via era, apenas, uma tênue lembrança dos dias alegres do passado. Tudo tinha mudado. Das sete famílias de antigamente, apenas três permaneceram. As outras migraram para a cidade.
Senti saudade dos tempos de criança.
Senti saudade da casa antiga, do rio, das ingazeiras, do silêncio e da beleza bucólica que dominava aquele lugar. E descobri, na fase adulta da minha vida, que eu vivia no paraíso da vida de outros tempos, mas, apenas, na minha imaginação. Eu estava parado diante da solidão da curva do leito seco do rio à espera do milagre de vê-lo novamente, para confortar meu coração, como uma bênção celta, que conforta o coração do viajante, diante da solidão dos caminhos.
Meus olhos se encheram de lágrimas. E uma delas pediu licença para cair, na esperança de regar a terra, de encher de água o leito seco da curva do rio e de trazer de volta as ingazeiras que morreram. Tudo em vão. As águas não voltaram ao leito seco do rio, e as ingazeiras, às suas margens desiguais.
Então me dei conta de que vivia na cidade, sangrando a vida de recordação e o coração de tristeza e dor, a olhar para o passado. E, agora, estava de pé, entre a casa antiga e a curva do leito seco do rio das minhas recordações, 55 anos depois, revivendo, na memória, a vida como era antes: bebendo leite no curral, correndo livre pelos campos, abrindo vagens e comendo ingá, ou tomando banho na curva do rio, no tempo das ingazeiras.