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postado em: 13/12/2007
O último sorriso Fernando de Almeida Silva Uma semana após a morte de Frank, Mayra me procurou. Queria saber sobre os últimos momentos da vida de seu irmão e da sua angústia pela proximidade da morte. “Você era seu melhor amigo”, disse-me. Mas o Wilson, o Wagner, o Wanderley, o Cláudio e o Jorge estavam sempre com ele. A Zulei e a Sílvia também. Parece que ele amava a Zulei. Falarei sobre isso depois. Éramos todos colegas de classe, naquele mundo distante de colégio interno, que o tempo não mais registra, e que a vida deixou num bucólico canto da memória para removê-lo, de tempos em tempos, como agora, quando evoco essas recordações sobre àquela época e àquela juventude, que sonhava mudar o mundo com suas idéias, palavras, canções e, alguns, com o poder das armas somente, o ideário supremo da revolução sectária. Aceitei falar com ela e marcamos um encontro na casa antiga no alto da colina, onde Frank morreu e foi sepultado debaixo do carvalho, sob o olhar sereno das estrelas. Pedi que fosse apenas ela e eu, pois, recordá-lo, seria como vê-lo morrer outra vez. Nos dias anteriores a esse encontro, pensei muito no Frank, que ficava horas na varanda da casa, em silêncio, sentado na cadeira de vime, olhando o tempo passar. Gostava de ouvir o vento e o murmúrio triste das águas do riacho, que corriam, lento, para ver o mar. Gostava de ver o sol fugindo do dia, a cigarra cantar e, à noite, o vaga-lume piscar. Era assim que renovava suas lembranças à porta das recordações. Lembranças dos amigos que partiram, alguns, para nunca mais voltar. Lembranças dos pais, dos irmãos que, como Mayra, depois o viram morrer. Lembranças da vastidão enorme dos campos verdes de sua terra natal. Lembranças das colinas, dos vales, enfim, de tudo que fazia parte de sua infância e que o tempo deixou para trás. Mas surpreendia-se com a proximidade da face cruel da morte, que batia à sua porta querendo entrar. E uma lágrima solitária sempre corria pelo seu rosto triste, misturando-se a soluços de recordação, como a pedir àquele tempo de outrora para voltar. Foi doloroso, ser escolhido entre os amigos de Frank, para essa inglória missão de falar sobre os últimos dias que antecederam à sua morte. A morte de alguém que a gente tanto queria, para alguém que tanto o amava. Falei com os meus amigos, que ia à casa da colina contar a Mayra, como Frank viveu ali. E quando voltei, disse a eles que ela tinha chorado muito e depois, partido, nas asas das recordações. Partiu com o coração ferido pelo sofrimento de perder Frank tão cedo, mesmo sabendo que não podia mudar a realidade trágica de sua morte esperada. Partiu ladeando o vale que ele tanto amava, como a vê-lo em seus pensamentos, caminhando no outro lado ou, talvez, um dia, na eternidade. E fiquei ali, parado, olhando-a partir, até a noite chegar. Sentei debaixo do carvalho, que fazia sombra no túmulo de Frank. Uma cruz solitária tinha sido colocada sobre ele. As letras brancas na cruz preta estavam queimadas pelas muitas horas ao sol. A terra havia baixado. A grama começava crescer. Um pássaro já havia cantado e dormido sobre o braço esquerdo da cruz, pois estava sujo. Então pensei: “Coitado do pássaro, o Frank jamais ouvirá seu canto”. Fiquei olhando para aquele túmulo, que me trazia recordações da vida... E da morte também. E de novo pensei: “Por quê morrer tão jovem, quando ainda há uma eternidade diante de nós? Por quê partir para a morte, quando a vida quer que fiquemos? Por quê nascemos para depois morrer? Se existem primavera e verão, outono e inverno, não haveria um espaço glorificado de tempo, uma estação intermediária entre a gente e a eternidade, a vida e a morte, para refletirmos sobre nosso fim? Por quê a mão da vida se afasta de nós na hora da morte?”. Um pássaro, talvez o mesmo de antes, pousou sobre o braço esquerdo da cruz, sacudiu as asas, cantou seu canto e sumiu no vale. Repeti, em meu coração, a inutilidade do pássaro cantar sobre o braço esquerdo da cruz: “Coitado do pássaro, o Frank jamais ouvirá seu canto”. Mayra chegou, desculpando-se pelo atraso. Desceu do carro, voltou-se para ver o vale e ali demorou em sua contemplação, como se seus olhos fossem os de Frank agora. Sentamos lado a lado, debaixo do carvalho, em silêncio, olhando apenas para o túmulo à nossa frente, cada um com sua dor, seu calvário, seu sofrimento, suas recordações, sem nada ouvir nem falar. Seus olhos estavam cheios de lágrimas suplicantes de explicações. Lágrimas que corriam pelas suas faces sofridas de recordação. Eu nada disse e nada pude fazer. Apenas chorei com ela no silêncio da minha dor e na angústia do meu sofrer. Silêncio e lágrimas disseram tudo sobre os últimos dias da vida de Frank e de como nós, seus amigos, o amávamos e o queríamos tanto. O tempo passou. Na casa da Sílvia, a cadeira onde ele sentava ficou vazia. Combinamos que nenhum de nós sentaria nela. Era o lugar preferido dele. Era ali que ele brincava, sorria e sonhava com as estrelas... E amava Zulei em segredo. Ficamos com a impressão de que, na cadeira vazia, ficou gravada sua imagem alegre, sincera, radiante, que permanecerá ali e em nossos corações para sempre. E foi ali, naquela cadeira vazia, que vimos o seu rosto-menino sorrir travesso e feliz pela última vez, para nós e para a vida. E, então, foi embora para sempre. Mais uma vez, obrigado Frank.