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postado em: 26/2/2008
A Última Visão da Vida Ele chegou calmo e quieto como o semblante divinal da tarde, o véu da noite sob as estrelas, o silêncio sobre o mar. Durante a manhã daquele dia, sentiu dores no peito, do lado do coração. Mas achou que eram pelo cansaço do trabalho de toda uma vida sem férias. Mesmo assim, ligou para a esposa e disse que ia voltar para casa. Tinha o semblante triste, o olhar distante, a preocupação estampada no rosto. Fechou a porta do quarto e sentou na cama para meditar sobre a vida. Olhou para os objetos à sua volta, as fotografias penduradas na parede e, pensativo, deitou, calmamente, para descansar do cansaço que o perseguia. Não sabia que naquele momento estava fechando os olhos para a vida e sucumbindo à nefasta presença da morte, numa viagem sem retorno. E assim, como o riacho que singra o vale para ver o mar, morreu, na quietude de paredes mudas, de mistérios indecifráveis, que o tempo não define, não sabe explicar. Na penumbra daquele quarto quieto, agora sem luz, cessaram as belas lembranças que tinha da infância distante, que não podia voltar. Naquelas paredes mudas, surdas, de segredos e de seus últimos instantes que ninguém viu, em que o manto da morte cobriu devagar seu rosto e abraçou com fervor seu corpo, ficaram gravados seu último olhar e seu último suspiro sobre a vida. E ali, sentiu a presença e o cheiro da morte, sozinho, sereno, como folhas dóceis na superfície das águas, deslizando, soltas, para ver o mar. Meu Quinhão de Sofrimento Fiquei arrasado quando soube da morte repentina de "Zeca", apelido familiar de José Carlos Almeida Silva. Não pensei que fosse testemunhar, outra vez em minha vida, a vitória da morte sobre a vida. Mas aconteceu de novo. Sabia que desde a criação do mundo a morte já havia chegado para milhões de pessoas, que milhares e milhares de famílias tinham sofrido por causa dela, mas, nunca, nunca imaginei que o meu dia de ver tudo novamente, fosse chegar tão cedo e da maneira cruel como chegou. Nesse momento, pensei: "Meu Deus, como pode isso acontecer?". Não podia acreditar que estivesse vendo outra vez a morte, com seu semblante frio, desafiando a vida, rindo dos enfermos no seu leito de dor. Eu não estava preparado para vê-lo tão cedo assim. Foi tudo tão de repente! E, novamente, pensei: "Meu Deus, será que não há outro caminho para atenuar o sofrimento da morte? Por que nunca aceitamos a presença dela? Por que a lágrima é o testemunho da morte? E o desespero, sua conseqüência maior? Se, nascemos para morrer, por que morremos, querendo viver? É a morte uma questão filosófica ou um dogma teológico? A Ciência pode explicá-la?". A morte de "Zeca" pegou-me de surpresa naquele dia. Eu tinha visto muitas pessoas chorarem à beira do túmulo, sem que pudesse encontrar palavras suficientes para consolá-las, atenuar seu sofrimento, aliviar sua dor. Tinha consolado muita gente, enxugado suas lágrimas e confortado seu coração. Tinha chorado seu pranto, vivido sua dor e compreendido sua angústia. Tinha sido solidário com todos, por dias e noites até: pai e mãe, filho e filha, esposa e esposo, cunhada, cunhado, sobrinha e sobrinho. Enfim, toda família conhecida, que tivesse perdido alguém e sofrido, sofrido muito. Mas, agora era a minha vez de ser lembrado, consolado, amparado e confortado por aqueles que um dia também sofreram e foram consolados, por causa dos estragos da morte em suas vidas. Meu coração estava triste, inconformado com essa terrível tragédia humana, que outra vez batia à minha porta, para anunciar sua chegada. A morte nos força querer prolongar a vida. A vida nos insta a ficar longe da morte. Sofremos durante a vida. E a morte nos faz sofrer mais ainda, até mesmo antes do nascimento. Talvez, pensando assim, foi que Dolworth, personagem de Burt Lancaster no filme Os Profissionais (1965), diante do inimigo, Jesus Garza (Jack Palance), baleado, disse: "Nada é para sempre, a não ser a morte". Não diria que a morte é "para sempre", no sentido de eternidade, mas, que é "para sempre", no sentido de sua presença contínua, enquanto houver vida na Terra. Um Fardo Indesejável Não foi fácil escrever este texto. Durante todos esses anos, carrego o peso da morte como um fardo tão pesado quanto indesejável. Mas sempre penso em que um dia ele será leve e a morte terá seu fim. No entanto, leio nas Sagradas Escrituras, livro de São João, capítulo 11, versículo 11, que a morte é um "sono". Por isso sei que "Zeca" está dormindo tranqüilo e sereno agora. Que não está sofrendo, e que um dia vai acordar e abrir os olhos para uma nova vida, no Paraíso de Deus. Os discípulos disseram a Cristo que Lázaro tinha morrido. Cristo, porém, disse-lhes calmamente, olhando para o futuro: "Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do sono". A morte de "Zeca" foi para ele um sono e, para mim, um sonho que me rouba o sono desde então. E continuo sonhando ver um tempo sem dor, desde que ele partiu para sempre. Nem mesmo sei como pude suportar sua ausência todos estes anos, mesmo vendo-o em meus sonhos, de camisa branca de mangas curtas, braços cruzados, sorriso singelo, discreto e tristonho, por ter perdido pai e mãe em tenra idade, voz mansa e suave, perguntando e olhando carinhosamente para mim: "E aí, "Véi", como vai?", como sempre me perguntava. Essa é a imagem que guardo dele, como o vejo em meus sonhos e está em meus pensamentos: caminhando comigo, brincando comigo, sorrindo comigo, pois jamais vou esquecê-lo. E continuarei a lembrar-me dele enquanto viver. Lembrar-me-ei de seus últimos momentos, de seu último sorriso, de suas últimas palavras, de seu último olhar para a vida... E para mim, quando nos vimos pela última vez. Não o vi em seus últimos momentos de vida. Mas, disseram-me que quando o encontraram, seu rosto estava sereno, tranqüilo, como a expressar a certeza da esperança da salvação, aquele anseio sublime e devastador da alma, que Deus colocou em nosso coração um dia. Hoje sei, olhando para o passado, que seus olhos procuraram essa esperança, para dormir e sonhar em paz. Sei também que ele, por acreditar nessa esperança, em seu último suspiro sobre a vida, voltou seu último olhar para o Trono de Deus. E tenho certeza de que ele viu Seu rosto sublime, resplandecente de luz, sorrindo para ele, como sua "Última Visão da Vida". E, só então, serenamente, morreu, em março de 2000. "Zeca" era meu irmão mais velho.