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postado em: 5/3/2008
O Mavioso Cantor Anônimo Era uma e meia da madrugada de domingo e eu estava acordado. Liguei a televisão para passar o tempo, na esperança de esquecer a insônia daquela noite e dormir. Não podia ficar olhando as estrelas ou contando carneirinhos... Precisava dormir, embora lutasse contra a insônia e as preocupações que povoavam minha mente. Além do mais, as preocupações poderiam vir depois, quando o dia chegasse. Assim pensava, quando, do meio da noite, ouvi uma voz melodiosa e triste, vindo do outro lado da rua, com seu lamento sofrido e destruidor. Fiquei surpreso, pois até então tudo estivera calmo lá fora, exceto por aquela voz que surgira de repente, desviando minha ira da insônia atroz. Era uma voz potente, cheia de brilho, romantismo e dor. Levantei e fui à janela olhar. Lá embaixo, na rua iluminada, em lugar de um galante e bem vestido cantor noturno, vi um homem pobremente vestido, maltrapilho até, indo de um lado a outro da calçada, à semelhança de um sonâmbulo, cantando sua dor sofrida para o nada. Fiquei maravilhado quando o vi. Ali estava um notívago cantor que o tempo não sabia existir, um errante anônimo, maltrapilho, concentrado em uma improvisada coreografia, envolvendo apenas ele, a calçada, o poste da esquina e a árvore na calçada da casa ao lado. Ouvir aquele maltrapilho, foi como ouvir a voz de Deus me falando ao coração. Foi como se tudo mudasse de repente e eu passasse a ver a insônia como uma amiga fiel a me fazer companhia, para ouvi-lo em silêncio contemplador. Um Bálsamo Noturno Aquele homem surgiu do nada para me distrair com sua voz maravilhosa e sua canção de saudade, como a evocar a vida de outros tempos, que agora retornava para fazê-lo viver a amargura de suas recordações. Ele cantava alto uma daquelas canções antigas, cujo título e autor não consigo mais lembrar, mas sua voz oscilava entre Vicente Celestino e Nelson Gonçalves. Cantava uma canção que, na discografia brasileira, ficou conhecida como de “Dor de Cotovelo”, de paixão, angústia, saudade, tristeza e, acima de tudo, amor perdido, que não era o meu caso. Sua curiosa coreografia musical, um ritual ditado apenas por seu inconsciente atribulado, fazia-o ir do poste à árvore, e vice-versa, contornando-os a intervalos regulares, à medida que cantava e andava de um lado para outro. Ao chegar ao poste, tocava-o levemente com a mão direita, contornava-o e, em seguida, ia para a árvore. Tocava-a com a mão esquerda e voltava ao poste novamente, fazendo o caminho que, findo o trajeto, lembrava o número oito. Cantava e caminhava. Ia e vinha, mecanicamente. E, finalmente, parou de cantar e partiu, deixando atrás de si o eco da canção que ficou gravada na memória da minha vida, e ele, como um enviado de Deus, para ludibriar a insônia e fazer-me dormir depois. “Por isso ele canta”, pensei. Ouvi-o cantar a mesma canção durante 45 minutos, com tantas repetições que perdi a conta. Cada nota e frase, era como se o dedo de Deus tocasse a boca dele e a minha alma também, num momento único e supremo, através de sua belíssima voz, que falava ao meu coração, em luta contra a insônia. Reminiscências Musicais Aquele simples desconhecido, que surgira do desatino da noite para embelezar minhas horas de vigília intensa, veio de Deus diretamente para mim. E fez-me lembrar de Antonio Salieri, o Compositor da Corte do Imperador José II, da Áustria, o famoso “rei músico”, irmão de Maria Antonieta, última rainha da França. Ao analisar o trecho lento da criação magistral de Mozart (1756-1791), Serenata para Sopros, K 361, 3° movimento, considerada a mais famosa de suas composições, Salieri disse, num misto de inveja, admiração e ciúme, ante a beleza e o brilhantismo da arte magistral do gênio de Salzburg, as palavras a seguir: “Na página, só um pulso, como uma enferrujada caixa de compressão, e então, subitamente, bem acima, um oboé – uma nota isolada, suspensa, constante, até que uma clarineta a tome, adoçando-a numa frase deliciosa, cheia de indefinidas ânsias. Pareceu-me que estava ouvindo a voz de Deus” – AMADEUS (1984), de Milos Forman. A voz que eu ouvia era como o som do oboé, saindo de um velho acordeão enferrujado, substituindo fagotes e trompas, com apenas um pulsar, “uma nota única, fluindo sem oscilar”, isolada, suspensa no meio da noite, como a voz de Deus falando-me ao coração: “Agora, podes ir dormir”. Salieri disse que Deus escolhera Mozart, “aquela criatura brincalhona, obscena”, para ser Seu porta-voz através da música. E que gênio o mundo conheceu! E, agora, Deus tinha escolhido aquele maltrapilho, chafurdado na miséria da vida, para falar comigo através de sua voz. E que voz Deus lhe concedeu! Por isso, desde então, sempre que vou à janela à noite, olho com muita reverência para a calçada em frente ao prédio onde moro, na esperança de ver outra vez aquele cantor, que, com sua voz sofrida, angustiada, alegrava corações solitários e fazia dormir sonhadores noturnos que a insônia atroz abraçou.