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postado em: 27/3/2008
A Beleza da Vida Cada época da vida tem sua beleza, sua magia. Magia de criança, de jovem adolescente... Magia de adulto... Beleza da vastidão que se perde ao longe sobre montanhas e vales, horizonte e caminhos, manhãs e tardes, noites e dias. Essas épocas maravilhosas registram o encantamento da vida no coração da gente, a transição do passado para o presente, e marcam esses momentos únicos para sempre, como um feixe de luz no espelho da alma, iluminando e refletindo a vida que chega e parte saudosa, nas estações intermediárias do tempo. Lembro-me dos meus tempos de criança, no final dos anos 40 e início dos 50 (a década do glamour e do começo das roupas folgadas), pois nasci no fim da década de 1940, precisamente, em novembro de 1947. Posso dizer que nasci logo depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), porque, para Deus, dois anos, no calendário da vida, nada são, se comparados à existência da própria vida. Comecei a me lembrar das coisas muito cedo. Ainda me vejo correndo pelos campos de capim colonião, com meus dois irmãos mais velhos que eu, sem pressa do tempo passar. Corria, montado em meu "cavalo" de vara verde, retirada do vale que acompanhava o pequeno rio. Subia e descia colinas, desbravava espaços, cenários, e sorria para a vida. Brincava de vaqueiro (condutor de gado vacum), trepava na cerca do meio do curral, tomava leite bem cedo, fazia bigode de espuma, comia abóbora e aipim cozidos no café da manhã (o aipim, com manteiga de litro), e raspa de requeijão, com açúcar, do fundo do tacho ainda quente, lá na "Desnatadeira" do velho Bráulio. Não posso me esquecer da coalhada que minha mãe preparava na gamela de madeira e nos dava todos os dias. Ela colocava o leite puro na gamela, cobria-a com um pano e, na manhã seguinte, a coalhada esta pronta, fria e com uma grossa camada de gordura por cima, a massa no meio e o soro esverdeado por baixo, toda furadinha, parecendo um queijo suíço. Depois, brincávamos com os dias do tempo da vida, tomando banho no pequeno rio, na vida bucólica daquele canto silencioso do mundo, trepado em ingazeiras, antes do último mergulho e da volta para casa, longe da guerra e das aflições da cidade. E, à noite, no terreiro, ao som de grilos e com vaga-lumes piscando, sob o sereno e o luar prateado, apontava o dedo para o Céu e contava as estrelas, até onde minha memória, em transe, alcançava. Vibrava com a descoberta de São Jorge, montado em seu cavalo guerreiro, cavalos e ovelhas, rostos e peixes, desenhados no Céu com estrelas que Deus colocou ali para a gente brincar, tudo saído da nossa imaginação de criança. Minha vida de criança era assim. E aquilo é que era vida! E aqueles momentos, sua beleza sublime. Que outra vida poderia haver? Que outro mundo haveria igual? Que encantamento maior me envolveria naquele bucólico canto do mundo, onde a vida sorria numa gota de orvalho caindo da folha do capim verde, à beira do caminho, logo ao raiar do sol, nas primeiras horas do dia? E à tarde, quando a cigarra cantava, anunciava a chegada da noite silenciosa, quando a gente dormia de um sono só. Só mais tarde, entendi que aquela vida era a essência da minha própria vida. A vida de criança que ficou para trás, e que hoje só existe no recanto da memória, para recordar e viver. E viver recordando. Naquela época, eu nem sabia que a beleza da vida consistia em correr contra o vento, comer abóbora e aipim cozidos, e contar estrelas, no terreiro, varrido com vassouras de malva verde, colhida ao lado da casa simples de estuque, de chão batido e sem forro, coberta com telhas velhas de barro cozido, à semelhança de um antigo telhado romano. Hoje sei, olhando para o passado, que aquela época representou a pureza e a beleza suprema da minha vida, que o tempo nunca mais repetiu. E fico pensando, debruçado na janela do tempo, como era bela aquela vida. E como tudo acabou: São Jorge, montado em seu cavalo guerreiro, ovelhas e árvores, cavalos e bois, rostos e peixes, desenhados no Céu, para brincar com minha imaginação de menino, sob a luz das estrelas e os encantos do luar. Reminiscências da Guerra Minha família e eu não vivemos nem sentimos os efeitos da guerra, pois morávamos em uma propriedade rural sem luz elétrica, água encanada, gás de cozinha ou rádio de pilha. Embora a poucos quilômetros da cidade, nem mesmo sabíamos que o flagelo da guerra ceifava milhares de vidas humanas todos os dias. Não tínhamos compreensão para isso. Só ficamos sabendo de seus horrores anos depois, pelo relato de pessoas que ouviam rádio e liam jornais e revistas, e quando a guerra acabou e o tempo passou. Nem tivemos conhecimento de que o Brasil tinha participado do conflito. Fiquei sabendo quando cresci e fui para a escola, onde estudei História no antigo ginásio, nos colégios por onde passei e na faculdade, onde me formei. Através dos relatos da guerra fiquei sabendo que o primeiro brasileiro a morrer durante o conflito foi o conferente de navio, José Francisco Fraga, metralhado no passadiço do navio TAUBATÉ, por um avião alemão, agredindo a soberania nacional. Isso foi em 22 de março de 1941. Em 1943 o Presidente Vargas criou a Força Expedicionária Brasileira - FEB. No ano seguinte a FEB foi lutar na Itália, onde integrou o V Exército dos Estados Unidos da América, comandado pelo general Mark W. Clark. Os nossos chamados "Pracinhas" foram lá, lutaram, fizeram bonito e voltaram cheios de glória à sua terra natal, como o capixaba Camilo Cola (desmobilizado em 30 de setembro de 1945), dono da Corporação Itapemirim, uma das maiores empresas do Brasil, cuja autobiografia, que me mandou de presente em novembro de 2007, A Estrada da Vida (José Olympio Editora, 3a. Ed., 238 pp., 2006), li de um fôlego só. Muitos não voltaram, como os 451 heróis que ficaram na Itália, envoltos na mística e na glória do valor pessoal e reverenciados com seus nomes registrados nos murais de honra do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, em Pistóia, em homenagem aos combatentes mortos na guerra iniciada por Adolf Hitler. Finda a guerra, a FEB é extinta em 01 de janeiro de 1946. Escrevo em março de 2008, em Vitória/ES, onde resido desde 1986 (e no Espírito Santo, desde 1981). Voltei algumas vezes, em longos intervalos de tempo, ao lugar onde nasci, para recordar minha infância, olhar as montanhas sem matas e pisar os caminhos antigos. Tudo estava mudado. As belas flores de então tinham desaparecido. Aqui e ali, esparsas árvores testemunhavam, em folhas murchas e galhos vergados, o silêncio doloroso das estações, sem o brilho dos dias de épocas distantes que o tempo deixou para trás. Apenas vi, no entorno de uma colina, como nos tempos antigos, um solitário "Santo Antonio", como o chamamos naquele distante canto do mundo, com suas flores vermelhas (tem também os de flores azuis, amarelas, brancas e rosas), desafiando o tempo e as estações, como um capricho da Natureza. O sol do verão matou o capim. O pequeno rio, se transformou num riacho de águas rasas e silenciosas, que choram um lamento triste, correndo para o mar. As duas casas e um dos currais não existiam mais. A velha cancela, ao lado do mata-burro, que eu costumava subir, para ver o horizonte mais distante, ainda estava lá, no mesmo lugar, envelhecida, desafiando o tempo e minhas recordações. O arbusto, atrás da nossa casa, a primeira, sob o qual eu brincava com búzios de "fazendeiro e criador de bois" com meus irmãos, também estava lá, tal qual o deixei quando criança e parti. Fotografei-o para lembrar-me dele, como parte da minha vida e da vida como era antes, esperando vê-lo outra vez um dia. O cenário era de devastação e abandono. Parecia que a guerra tinha passado por lá e destruído tudo. As centenas de bois e vacas resumiam-se a poucas novilhas para o abate. A vida agitada do passado tinha acabado. Tudo era silêncio, quietude e solidão. A impressão era de que a vida tinha acabado para sempre. Muita gente tinha morrido. Muitos, como eu, tinham partido, alguns, para nunca mais voltar. No pequeno trecho do rio, usei um cavalo para atravessá-lo, pois ia molhar os sapatos. Queria ver o antigo curral (eram dois, um de cada lado do rio), onde eu tomava leite de manhã, trepado na cerca do meio e fazendo bigode de espuma quente. Na outra margem, o cavalo não me obedeceu mais. Percebeu que eu não sabia montar (o animal conhece). Andava como queria e lhe dava na vontade, por mais que o cutucasse. Enfim, descobri, para meu desencanto, que não sabia mais montar, que tinha perdido, na prática, minhas raízes de vida da infância. Isso me assustou. Fiquei alarmado. Fui tomado pelo sentimento do pânico, de ser um estranho em meu próprio mundo. E o cavalo sabia disso. E quando, finalmente, abri a cancela e subi a ladeira para ver o curral, ele não estava mais lá. Tinha sido desmontado há muitos anos. Fiquei olhando para aquele espaço vazio, tomado pelo mato, como a ouvir mugidos de vacas e vaqueiros a chamá-las pelo nome, para a ordenha diária, que começava de madrugada. Foi uma tortura para o meu coração. As belas montanhas de outrora estavam desnudas, solitárias e tristes. Um manto de abandono e desgaste cobriu a beleza de outras eras. Havia a sensação de vida esquecida no tempo e de tempo esquecido da vida. Em silêncio, contemplei, angustiado, aquele cenário devastado pela ação do homem e esquecido pela Natureza, que fora um dia o belo mundo da minha infância, do meu tempo de criança, que a sublimidade da vida registrou em meu coração e que renascia naqueles momentos, nas lembranças que iam e vinham, no espelho do entardecer da própria vida, diante de mim. E fiquei olhando para o pasto seco, pensando em como tudo mudou, ficou diferente, triste e vazio, com a solidão pairando em cada canto e lugar. No fim do dia da minha última visita àquele mundo de saudade, parti. Era o ano de 1994. E deixei aquele canto que outrora fora belo e formoso, como formosa e bela fora minha infância, pensando voltar um dia, que ainda não chegou. E, hoje, se pudesse, voltaria correndo àquela época e àquele lugar, e viveria tudo outra vez: correr pelos campos, brincar de vaqueiro, fazer bigode de espuma; correr da boiada, comer raspa de requeijão com açúcar, abóbora e aipim cozido, com manteiga de litro na mão. E, então, num canto do tempo da vida, da vida que lá vivi, sentir outra vez a magia, a beleza e o encanto daquela época maravilhosa, sentar no terreiro e estrelas contar. No silêncio da noite, da alma cansada de esperança, de sempre querer àquele mundo voltar, descobrir, na fase adulta da minha vida, a sublime e encantadora beleza da vida, que um dia deixei e que existia lá.