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postado em: 30/4/2008
No Silêncio da Tarde O meu irmão Zezito era craque na pontaria. Eu, péssimo. Todos os dias ele matava um, dois, três... Até cinco passarinhos. E eu, em toda minha vida de “caçador”, matei apenas um. E bem pequeno. A vítima foi um “caga-sebo”. Os passarinhos pequenos eram ariscos e difíceis de abater. Mas, não escapavam dos ataques certeiros do meu irmão Zezito, que os imolava quase todos os dias. Os grandes, como urubu, gavião e carcará, pousavam longe, fora do nosso alcance. Sorte deles. Mesmo se pousassem perto, poderíamos até matá-los, mas, comer, nunca! Ninguém comia urubu, gavião ou carcará. Nosso desejo maior era matar um gavião, que roubava galinhas e, no dito popular de então, até criancinhas também. E mesmo os tais urubus, voavam alto, de onde localizavam as carniças fedorentas de cobras, lagartos, ratos, coelhos e cachorros que morriam e ficavam lá no campo, a céu aberto. Para obter um quilo de carne de caga-sebo, pombinha, rouxinol ou inambu, só mesmo matando algumas dezenas delas, o que ninguém conseguia. O bem-te-vi era arisco. E o anu, principalmente o preto, por pensarmos que era parente do urubu, ninguém queria. E olha que bem-ti-vi e anu era o que mais tinha. O bem-te-vi só vivia em cima da cerca, trinando, alegre, seu canto repetido: “Bem-ti-vi... Bem-ti-vi... Bem-ti-vi...”. E o anu, procurando carrapatos em cima de bois, bezerros e vacas. Em uma tarde quente de dezembro, avistamos uns passarinhos, voando próximos de nós, onde a estrada fazia uma curva para a esquerda, acompanhando o rio, depois da nossa casa. Seu trinar era sofrido, melodioso, triste, revelando cansaço, sede e, como se soubesse que podia morrer a qualquer instante, que estávamos ali para matá-los a qualquer momento, fugiam à nossa aproximação. Um deles desgarrou-se dos demais e pousou numa pequena árvore de galhos mirrados, a poucos metros de nós, entre a estrada e o rio. Pulou inquieto de galho em galho, num frenesi insistente, perturbador, nervoso. Depois, acomodou-se na ponta de um deles, como a buscar segurança por ali e abrigo na sombra. Moveu-se rápido para os lados, sacudiu freneticamente a cabeça e o rabo várias vezes, cantou nervosamente e, finalmente, aquietou-se num galho, protegido do sol, mas exposto para mim. Pensei: “É a minha vez”. Um Atentado Ecológico Eu estava a uns 30 metros de distância dele. Mirei demoradamente, para não errar. Respirei fundo, prendi a respiração, esperei o momento certo e disparei o petardo. Não achei que fosse acertá-lo (nunca acertava mesmo!). Estiquei o estilingue e soltei a “bala”, que cortou o ar em direção ao pássaro, quase do tamanho da folha da árvore que escolhera para pousar, de tão pequeno que era. Minha ansiedade fez com que os segundos se tornassem um tempo eterno demais para mim. Mas, em seguida vi, para meu espanto, o passarinho despencar por entre folhas e galhos, rodopiar no ar e desaparecer na relva seca, ali mesmo, bem diante dos meus olhos. A “bala” tinha acertado a cabeça dele (não sei como, eu era ruim de pontaria!). Ao apanhá-lo no chão, senti muita pena dele, por tirar a vida de um ser que, minutos antes, voava livre pela Natureza, para alegrar as horas da minha própria vida. Não podia imaginar que o ato banal da consciência de uma criança pudesse produzir, na vida de um adulto depois, tamanha dor e sofrimento. E isso eu não podia suportar... Mesmo sendo uma criança. Peguei-o calmamente em minhas mãos, olhei, extasiado, para minha “primeira caça”, a de toda a minha vida, e voltei, jubiloso, para junto do meu irmão, que ficara me olhando, quase não acreditando no sucesso da minha pontaria. Logo depois, num estertor de causar compaixão e tristeza, e no último suspiro da vida, o passarinho morreu em minhas mãos, sob o olhar compassivo de Deus. A cena inglória me fez refletir sobre o valor supremo da vida, seja de uma pessoa, de uma árvore ou de um solitário passarinho, que voava solto e pousou, cansado, para refazer suas forças e voar, novamente, pela imensidão do Céu, por vales, montanhas e Campinas, na tarde quente de verão. Nunca mais cacei; nem passarinho, nem nada. Lembranças do Dia Fatídico Em 1994, trinta e nove anos depois, eu estava lá mais uma vez, no mesmo lugar da minha primeira vitória inglória, do meu primeiro sucesso como caçador de pontaria ruim. De pé, à beira da estrada, olhava com saudade a árvore das minhas recordações e revivia a cena do passado, com emoção e tristeza. E, outra vez, senti a mesma dor e o mesmo sentimento de tristeza como no passado, naquele mesmo lugar. Fiquei pensando em como estaria a Natureza naquele canto do mundo, se eu não tivesse matado o caga-sebo solitário. É possível que, a essa altura da vida, eu ouvisse a melodia solta do canto triste dos seus filhos e filhos dos filhos destes, voando sobre minha cabeça atônita, de cabelos brancos multiplicados. Voltei à estrada e parti, quieto, deixando no olhar nostálgico sobre a árvore de minhas recordações, as lembranças do passado de menino-caçador, sufocando as ânsias numa lembrança inglória, da qual não me orgulhava mais. Sofria e recordava. Recordava e sofria, até desaparecer na curva, lá no alto, onde estavam a velha cancela e o mata-burro de madeira, e onde eu brincava, ouvindo o vento passar. As lembranças daquele dia de 1955, quando eu tinha apenas oito anos de idade, ainda estão gravadas nas páginas da minha vida, como uma dor que herdei da infância, que ainda não consegui superar. A dor de ver o passarinho morrer em minhas mãos e eu, desejando vê-lo morrer depressa, continua em meu peito como um castigo merecido da vida, que eu tento esquecer. E, desde então, cada dia da minha vida é como se fosse uma repetição daquele em que vi o caga-sebo trinar pela última vez, no silêncio divinal da tarde, deixando a vida para me alegrar, mas implorando a Deus para não morrer.