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postado em: 17/7/2008
O Tombo Na região onde nasci, a expressão “montar em pêlo”, significa montar sem os devidos arreios: sela e brida. E sela, com rabicho. Os que montam “em pêlo”, usam apenas um cabresto, para direcionar o animal. Nunca gostei de montar em burros e cavalos, “em pêlo”. Jumento? Nem pensar! O jumento e a mula eram as vítimas preferidas dos proprietários de fazenda, para o trabalho de carga doméstico. Burros, cavalos e éguas, para montaria. O jumento era o cavalo do pobre. Já os tropeiros preferiam as mulas. Havia uns burros grandes, quase do tamanho de um cavalo. E, apesar de “duros” e desconfortáveis, como os velhos “fuscas” e jeeps Willys, eram fortes e resistentes. O jumento, quando encosta e fica na sombra, é melhor desistir de querer montá-lo ou obrigá-lo a trabalhar. O bicho empaca – e lá se vai o passeio! E o burro, além de empacar, também é teimoso, cheio de vontades. Lá um belo dia, na parte da manhã, o Waldemar Rocha, um amigo da família, chamou-me e disse: “Neném – apelido que meu pai me deu, quando criança – vá à casa do meu pai e peça ao “Jai” para colocar os arreios nesse burro, e volta depois”. Eu tinha apenas meus nove anos de idade. A casa do pai dele, “Seu Tintino”, era a sede da fazenda vizinha. E “Jai” era seu irmão. Senti um calafrio danado, pois não gostava de montar “em pêlo”. Mas, para atendê-lo, lá fui eu, estrada a fora. Para chegar à casa, tinha de passar por cinco cancelas: três no curral, perto da casa do Waldemar, uma no topo do morro e, a última, perto da casa do “Jai”. Peguei o cabresto e montei. Passei pelo curral e subi o morro, cerca de 800m até o topo. Lá em cima havia (e ainda há) outra cancela, a quarta, que dividia as fazendas. Passei por ela e comecei a descer o morro pelo lado oposto, feliz da vida, deslumbrando-me com vales e montanhas a perder de vista... E a liberdade com que vivia. Da passada lenta, o burro começou a trotar e, do trote, a correr, à medida que se aproximava da casa do “Jai”. Puxei o cabresto, para forçá-lo a diminuir a marcha, mas ele não obedeceu (o cabresto é formado por uma corda só, sem freio, que passa por trás das orelhas do animal, com uma ou duas voltas, pelo focinho). Continuei puxando, mas cabei deslizando do lombo para o pescoço do animal, o que o irritou repentinamente. Fui escorregando pelo pescoço, agarrado à crina, até chegar perto da cabeça. E, aí, a coisa ficou feia. O burro, zangado com o meu atrevimento, corria sem domínio – desembestado... Quando tentei segurar-me nas orelhas dele, foi como se ele tivesse tomado um choque elétrico de 360 volts. Partiu em disparada morro abaixo, tentando se livrar do incômodo no pescoço, que era eu... À medida que descia e eu segurava nas suas orelhas, a disparada aumentava. Finalmente, antes da última cancela, o burro virou a cabeça para o lado esquerdo (e quando o animal, em disparada, vira a cabeça para um dos lados, é sinal de que está muito assustado e sem controle) e, num movimento brusco, jogou-me a uma boa distância da estrada. Ao cair, fiz um escândalo tão grande, tão exagerado, que todos da fazenda (todos!), correram em meu socorro, pensando que eu estivesse todo quebrado. Coisas de criança... A “Branca”, irmã do Waldemar, foi a primeira a chegar. Levaram-me para dentro da casa. Bebi água, chorando o soluçando, com todos à minha volta e, depois, contei o que viera fazer ali. Por incrível que pareça e, apesar do exagero dos gritos e do choro, não tive sequer um arranhão ou osso quebrado, o que sempre me faz pensar que crianças têm carne de “borracha” e ossos de “plástico flexível”. O “Jai” pegou o burro no pasto, colocou os arreios, montei de novo e voltei, agora firmando nas rédeas, nos estribos e no cabeçote da sela... E o burro podia correr o quanto quisesse. Ao chegar, contei tudo ao Waldemar, que riu muito, mas, com certa pena de mim. Reminiscências da infância Por que sempre paramos para recordar o passado, os caminhos antigos que deixamos lá? Penso que é pela sublimidade existencial que o passado evoca. Pela beleza de seus momentos. Pela encantadora fase da vida que jamais volta, mas que deixa, em cada canto e lugar, um pedacinho do nosso Eu, para nunca esquecermos o lugar onde nascemos, de onde viemos e onde fomos parar. Em síntese, nunca desligar a vida maravilhosa do passado, do coração cheio de saudades e recordações, no presente. E ficamos a sonhá-la, em nossos momentos de ternura, como se pudéssemos vivê-la novamente e senti-la, suavemente, na brisa da tarde, quando o dia finda e a noite chega, e depois parte, para outro dia chegar. Nossa vida emocional se manifesta com mais intensidade na fase adulta e chega à maturidade plena na velhice sonhadora. Mas a saudade vem das coisas do passado, do tempo sem idade, da vida em movimento. Quando criança, a vida é um deslumbramento indelével, que nos leva a querer vivê-la para sempre, sem interrupção de tempo e lugar. Mas, quando crescemos e a vida nos impele para sua bruta realidade cotidiana, sonhamos querer voltar àquele tempo de outrora, quando éramos crianças e felizes, a fim de saber como tudo era antes... E como tudo ficou diferente, em nossa vida presente. Ao reviver o meu tempo de criança, na roça, umas das primeiras cenas que me vêm à memória é o tombo que levei do burro e o escândalo exagerado que fiz, para chamar à atenção de todos. Detenho-me a pensar, no recôndito da alma, sobre àquela vida, adormecida, nas brumas do tempo do passado maravilhoso. Mas, quando vejo cavalos, burros e jumentos, a passadas lentas ou trotando, por caminhos e trilhas (e até mesmo morro abaixo), entre montanhas e vales, ela desperta. Nesses momentos, recordo não somente os caminhos por onde passei, mas, também, o tombo e o susto que levei, de um burro nervoso e descontrolado.