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postado em: 23/7/2008
A Pergunta Óbvia Parei diante da vitrine de equipamentos fotográficos e comecei a olhar as máquinas expostas à venda e analisar os preços. Meus olhos se avivaram com as novidades de modelos e cores, num curto período de apenas seis meses, desde os últimos lançamentos dos diversos fabricantes. Havia máquinas para todos os gostos e bolsos. Cada uma oferecia uma série de vantagens, com letras bonitas e desenhos chamativos, nas embalagens empilhadas num canto da vitrine. Como fotógrafo que também sou, encantei-me com elas. Estava absorto, diante de tantas maravilhas tecnológicas, em tão pouco tempo, que nem percebi a aproximação do vendedor. Ele chegou e, sem me cumprimentar com, pelo menos, um “Boa Tarde!”, foi logo me perguntando: “Está olhando as máquinas?”. Olhei para ele com um “sorriso maroto” e fiquei quieto. Foi minha primeira reação. De seus lábios, notei um provocativo sorriso sarcástico, de “pouco caso”, que começava ali e se alastrava por todo o rosto, como um desdém desafiador, como se tivesse certeza de que eu não ia comprar nada e, como tal, estava perdendo seu tempo. Além do mais, dava a entender que estava ali, apenas, como dever de vendedor. Tinha o ar do deboche, do pouco caso, do desinteresse desprezível, humilhante, mesquinho. É possível que pensasse que, como eu não ia comprar nada mesmo, então, estava perdendo seu tempo e, no íntimo, rezava para eu ir embora o mais rápido possível. Perplexo, senti, imediatamente, ódio e revolta, por ouvir uma pergunta óbvia como aquela. Ódio, pela pergunta inútil, sem sentido, provocativa, cretina até. Revolta, pela “agressividade” sofrida. Eu estava parado, diante da vitrine, havia uns dois minutos, olhando as últimas maravilhas do mundo fotográfico, e ele chega e me pergunta, simplesmente, se eu estava “olhando as máquinas?!”. Pensei: “Não acredito... É pura provocação!”. A pergunta é para aborrecer qualquer um. Eu não ia comprar nada mesmo. Olhava, apenas, por gostar daquilo que estava olhando. Passava os olhos de uma para outra máquina. Comparava preços, modelos, fabricantes, recursos, tipo de lente, tudo, bem calmamente. De repente, o sujeito vem e me pergunta se eu estava “olhando as máquinas”?. Pensei de novo: “É brincadeira dele. Está brincando com a minha cara. Estou diante da vitrine, olhando todas as máquinas, e ele vem me perguntar se estou ‘olhando as máquinas’”?! O primeiro impulso que tive foi o de dar-lhe uma resposta malcriada, pela maneira irônica como me interpelou, embora, talvez, não fosse essa sua intenção ou não soubesse se aproximar de fregueses, de maneira diferente. Mas a obviedade ficou latente. A ironia era ferina e cruel, para alguém no seu máximo domínio de tolerância provocativa, como eu, naquele momento. A vontade que tive foi de avançar sobre ele e descarregar toda a minha ira de um golpe só, certeira e fatal, para ele nunca mais esquecer que um dia me viu ali, parado, diante da vitrine, “olhando as máquinas” fotográficas. Mas, o domínio da razão falou mais alto. E fiquei quieto. A ironia me fez recordar que a paciência libera a calma e, como tal, o autocontrole. Olhando para ele, quase acreditei que eu fosse um “ignorante semântico”, que não entendia o sentido das palavras, diante de uma vitrine, olhando máquinas fotográficas, apenas para me distrair e passar o tempo. E ele, um vendedor “filósofo” e atencioso. Pela minha reação instantânea, pensei que estivesse neurótico. A maneira como se aproximou e fez a pergunta, logo vi que não estava preparado para a função. Notei, também, que ele não sabia distinguir um ‘voyer’ de vitrine, de um comprador compulsivo. Faltavam-lhe educação e cordialidade, características intrínsecas em qualquer vendedor. Pensei novamente: “Qual resposta darei a ele?”. A esta altura, minhas orelhas “queimavam”, a respiração era ofegante e o coração pulsava rapidamente, de tão irritado que fiquei. Era óbvio que eu estava olhando as máquinas. Era óbvio que eu estava ali, diante da vitrine, olhando tudo que tinha nela. E a pergunta dele era óbvia demais para mim... Ou para qualquer pessoa em sã consciência. Era tão óbvia, mas tão óbvia, que me deu vontade de responder-lhe de maneira mal educada, a fim de aplacar minha ira repentina e satisfazer meu ego, momentaneamente ferido. Mas, dominei o meu ímpeto, para não explodir e descer ao mesmo nível da provocação. Mesmo assim, engolindo a raiva e, num misto de ironia contida, e com um sorriso inquietante, impaciente, deu-me vontade de responder-lhe: “Não, as máquinas é que estão me olhando!”. Mas não disse. O que leva uma pessoa a provocar outra, de maneira consciente (ou inconsciente), de forma deliberada, como um vendedor de loja de produtos fotográficos, por exemplo? É o despreparo para a função, da vivência social, da psicologia comercial, do trato com as pessoas. O vendedor preparado sabe como agir em momentos de risco ou de interpelação a estranhos. Mas, este parece que não sabia. Daí, a provocar incêndios nas 24 horas do dia. A pergunta óbvia, suscita raiva, ódio, ironia, ira e, na falta de controle emocional, uma resposta mal-educada. A ironia é uma manifestação deliberada do deboche. É sarcástica. E, embora seja provocada pela virulência do deboche, sob o manto da cortesia, é nefasta e inoportuna, porque, em muitos casos, vem acompanhada da zomba, do sorriso “zombeteiro”, que irrita e leva ao constrangimento, à reação colérica até. Além do mais, suscita o ódio, a resposta imediata e a mágoa entre pessoas. É por isso que, no convívio social, muitas vezes a ironia é a causa de inimizades e desentendimentos pessoais irreconciliáveis. Quem nunca foi vítima de uma pergunta óbvia, tipo “Está de terno hoje?”, dirigida a alguém que está vestido de terno e gravata? Ou “Está trabalhando hein?!”, para alguém que pegou no batente desde cedo e atravessou o dia, ocupado em uma atividade que ainda não terminou? Existe pergunta mais óbvia do que esta: “Está almoçando, hein!...”, dirigida a alguém, almoçando num restaurante? Ou, então, “Passeando hoje, hein?!”, para um pai de família, andando no parque com esposa e filhos? É de doer os tímpanos. É óbvio demais. Daí a ira que ela suscita. A pergunta óbvia leva-nos a um imediato sentimento de repulsa e irritação. Leva-nos a querer revidá-la “na mesma moeda”, na mesma intensidade com que nos é feita. Se olharmos a ferida do nosso sentimento, provocada por uma pergunta óbvia, é compreensível nossa reação imediata a ela. Mas, se considerarmos a fraqueza humana como prova de ignorância latente, precisamos perdoá-la, quando estivermos, por exemplo, diante de uma vitrine, olhando máquinas fotográficas, por prazer e contemplação. A pergunta óbvia ofenda, agride, machuca, debocha. Deixa mágoas e ressentimentos. Daí o mal que nos causa. E, para não provocar uma “terceira guerra mundial”, fiz de conta que não a entendi... E fui embora sem olhar para trás.