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postado em: 8/8/2008
“Zonzeira e Cara Feia” “Juniti” trabalhava na fábrica de um amigo meu, Odecir Adwalter Gocking (1943-2004), em Cariacica-ES. Magro, esquelético, parecia que andava dormindo, ou, no melhor sentido da palavra, que dormia andando. Tinha a impressão de que ele nunca comia, de tão magro e pálido que era. Com a barba sempre por fazer, não sentia a necessidade de se alimentar para viver. Sempre que eu ia à fábrica visitar meu amigo, encontrava e conversava com o “Juniti”. Achava graça no seu modo simplório e silencioso de ser. Simplório por excesso de humildade e falta de maldade em seu coração. Silencioso, devido ao modo de vida que escolhera e que ainda vivia. Nunca dizia palavrão, não era malcriado nem mal educado. Era, um “passarinho” silencioso, mas ativo no que fazia. Conversando mais próximo a ele, descobri por que nunca falava nada sobre comida, temperos, sobremesas, frutas, etc. Fiquei desconfiado, devido ao cheiro horrível que ele exalava quando falava. Um dia, conversando como o dono da fábrica, meu amigo, descobri que o “Juniti” era alcoólatra havia muitos anos. Não o censurei nem o acusei pelo nefasto vício. Apenas o aceitei como era e como Deus o aceitava, na sua condição pecadora e de escravo da bebida alcoólica. Seu nome não era “Juniti”. Parece-me que era Jurandir. Não sei ao certo. Mas nunca me lembrava do seu nome de batismo. Esquecia sempre. Quando o encontrava, o primeiro nome que vinha à minha mente era “Juniti”. Então, passei a chamá-lo de “Juniti”, por brincadeira de amigo, nunca para ridicularizá-lo. E o apelido pegou. A partir desse dia, todos passaram a chamá-lo pelo novo “nome”. E ele, pacientemente, aceitou. Eu achava graça no seu modo de ser, por sua humildade e simplicidade. Toda vez que eu ia à fábrica, sempre conversava com ele. E ele, com a cara de quem nunca dormia, escutava com atenção, com um olhar distante e vazio, sem nunca olhar para mim. Era dos primeiros a chegar na fábrica. Falava pouco e não faltava ao trabalho, apesar das bebedeiras noturnas que fazia, à base de cachaça pura de qualquer sabor, no boteco perto da casa onde vivia com a mãe somente. Como arranjava dinheiro para pagar o boteco, não sei. Só sei que, assim que saía da fábrica, à tardinha, ia direto para o boteco beber. A comida era a cachaça, que o deixava viver. Por isso ele era tão magro e de cor esquisita. Era um homem de 30 anos de idade, num corpo que aparentava 50. Um dia, depois de dias, meses e anos, ao visitar meu amigo, dono da fábrica, e, movido pela amizade que já nutria ao “Juniti”, fui conversar com ele, como fizera muitas vezes. Queria fazer-lhe uma única pergunta, que me atormentava havia tempo e não me dava sossego. Era uma dessas perguntas corriqueiras que a gente faz a pessoas dominadas pelo vício, tão acostumadas a ouvir gracejos e piadinhas inoportunas a toda hora. Mas, no meu caso, não era gracejo nem piada inoportuna. Era apenas o interesse humano pela situação de um amigo dominado pelo vício destrutivo da bebida. Tomei coragem e fui direto à pergunta. Cheguei perto dele, cumprimentei-o como sempre fazia e, ele, com humildade e a cortesia de sempre, retribuiu-me o cumprimento com um sorriso pálido, num rosto triste, sem graça, que revelava todo o sofrimento, que o tempo não sabia definir e o castigo da vida, explicar. A verdade é que eu tinha pena do “Juniti”. Achava-o frágil e indefeso, diante da realidade cruel da vida, para com ele. Não podia entender como um ser humano chegava àquele estado de vida vegetativa, sem nenhuma expectativa de melhora no futuro. Mas Deus sabia. Então, olhando de frente para ele, num momento ínfimo que pareceu uma eternidade, perguntei-lhe calmamente: “’Juniti’, que graça você acha em beber”. E ele, entre encabulado e surpreso, pensou, pensou, pensou... E, com sua extrema humildade, olhou e sorriu, meio sem graça, para mim. Em seguida, abaixou a cabeça e continuou trabalhando. Parou um pouco, como a escolher as palavras e fugir à verdade condenatória. Foi, então, que, para minha surpresa, ouvi uma das respostas mais intrigantes de toda minha vida, de alguém dominado pelo vício devastador do álcool. Ele, calmamente, com um sorriso maroto de satisfação estampado no rosto, respondeu-me, sem nem mesmo olhar para mim: “O gostoso é a zonzeira e a cara feia”. Surpreendi-me com sua resposta espontânea e sincera. Nunca imaginei que o alcoólatra bebesse para sentir prazer na “zonzeira” e na “cara feia”. E, embora soubesse que o vício destruía sua vida, era incapaz de lutar contra ele. Cada dia que passava, a ação silenciosa e destruidora do álcool, o levava para mais perto da morte, sem que ele, ao menos, percebesse. Sumiço e destruição Passaram-se os meses. Um dia, fui à fábrica visitar meu amigo e não vi o “Juniti”. Voltei lá outras vezes e não o vi de novo. Em nova visita, perguntei por ele. Disseram-me que não trabalhava mais ali. Preocupou-me sua ausência, devido a seu estado de dependente crônico do álcool. Já me acostumara a vê-lo de “zonzeira e cara feia”, a cumprimentá-lo e a brincar com ele, toda vez que ia lá. Fiquei pensando em como “Juniti” ia fazer para sustentar a mãe e o vício, agora que estava desempregado e sem o salário mínimo que recebia no final de cada mês. Perguntei onde ele morava. Pedi o endereço de sua residência. O endereço que me deram, era incerto e confuso, num lugar pobre e miserável, de um bairro de periferia. Mesmo assim, fui procurá-lo. Não o encontrei. Tentei outras vezes e foi em vão minha tentativa de revê-lo. Finalmente, desisti. Alguns meses depois eu estava de novo na fábrica e perguntei pelo “Juniti”. Informaram-me que ele tinha morrido. Perguntei a causa. E a resposta foi mais do que óbvia: CIRROSE HEPÁTICA. O álcool o tinha vencido, destruído seu fígado e sua vida para sempre. Isso foi em 1995. Escrevo em janeiro de 2008. Segundo imagino, ele deve ter sido sepultado num caixão simples, num lugar comum e solitário do cemitério, com a presença apenas de sua devotada e sofredora mãe, que nunca o abandonou. Sua morte me entristeceu e fiquei alguns dias só pensando nele. Ele morreu muito novo. Poderia viver mais, se não bebesse. Tinha apenas 30 anos de idade e muitos anos de vida pela frente, se não tivesse se deixado dominar pelo álcool. Mas, enfim, o álcool o venceu e a morte o levou. Já se passaram 13 anos. Sempre me lembro do “Juniti”, de sua parceria com o álcool, a farra noturna, o aspecto cadavérico e o envelhecido precoce: magro, anêmico, faminto, a caminho da destruição final. Embora tenha sido um infeliz dominado pelo vício, tinha algo de bom em sua alma sincera, que o levava a viver sem maldade, sem mágoa e sem ódio contra ninguém. Era bondoso e atencioso com todos. Assim viveu e assim morreu. Vem o tempo e passa o tempo, mas sempre me lembro dele, quieto, encabulado e tristonho, diante da minha pergunta inesperada, que o levou a responder-me com convicção e prazer, que o gostoso da vida era a “Zonzeira e a Cara Feia”.