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postado em: 5/9/2008
Quando Meu Filho Saiu de Casa
Sempre imaginei que, um dia, meu filho sairia de casa para sempre. Todavia, foi uma surpresa, certa noite, meses antes, quando pediu que nos reuníssemos na sala, para dizer que ia se casar, num tempo muito curto para mim.
Como disse em outro texto, não estava preparado para esse difícil momento, de ver meu filho crescer e, como ave de arribação, alçar vôo para longe do lugar do seu nascimento, seguindo o preceito bíblico que diz: “... não é bom que o homem esteja só...” (Gênesis 2:18, BVN). E ele estava “alçando vôo”, para seu novo destino, desgarrando-se de minhas mãos, envelhecidas pela intolerância do tempo.
Psicologicamente, sempre o imaginei ao meu lado, em nossa casa, vivendo e falando conosco... Para sempre. Nunca pensei que um dia o veria partir, assim, tão de repente, afastando-se da casa de seus pais, onde sempre viveu e se preparou para a vida.
Naquele momento, senti um misto de alegria e tristeza, torturando minha alma, apertando meu coração, anunciando um deslizar de lágrimas pelas faces, envelhecidas pelos anos. E, também, entristecidas, pela proximidade da separação. E então, estremeci e quase chorei, com a esperança, de vê-lo sempre, olhando para além dos átrios do tempo da vida e das constelações infinitas de Deus.
Quando ele entrou na igreja vi, nitidamente, a fronteira entre o sorriso e a lágrima, a alegria e a tristeza, a saudade e a esperança, o sofrimento e a dor. Entre o menino que crescera para a vida e o homem que crescia para sua própria vida.
E eu estava no meio dela, como a alvorada, tristonha, entre a noite que parte e o dia que chega. Entre as estrelas que se apagam, ao findar a noite, e o sol que brilha nas manhãs de outono.
E então, mil pensamentos e mil imagens povoaram meu ser. Pensamentos dispersivos de compreensão e angústia; imagens de transes recordativos que a compreensão da vida projeta num flash de dura realidade existencial.
Se mil pensamentos e mil imagens surgiram de repente, então, eu teria mil razões para chorar, encontrar mil forças e mil maneiras de olhar a vida, a partir daquele momento de transição. Conclui que teria de me conformar com a realidade que, de repente, se punha, impiedosa, entre nós.
Compreendi que o dia da partida é o dia da separação; que a separação é sempre triste; que a dor da partida é sempre cruel, pois toma conta do corpo e fere o coração, como setas incendiadas à procura do alvo certeiro, para atingi-lo e fazê-lo sangrar, até à extrema aflição sofredora; que a partida é o sangue derramado, nos átrios da dor e da saudade de quem fica, para, então, fazer-nos sangrar e, em silêncio, sofrer, sem limites. Somos o arco; eles, os filhos, a flecha, arremessada à procura do alvo, do destino que Deus traçou.
É doloroso e cruel, o dia da separação. Que o digam os apaixonados que se vão (e os que ficam), mesmo por um breve intervalo de tempo. Ela surge como uma faca afiada, cortando o ser, dividindo-o, em metades desiguais de sofrimento e tristeza, que trituram a alma e debulham-nos, até prostrar-nos, ajoelhados, ante o altar da aflição, até a última gota de sangue derramado, até o derramar da última lágrima sofrida.
A complexidade sentimental que a separação provoca, induz-nos à aceitação de emoções repentinas e dolorosas, que não queremos provar nem sentir... E muito menos suportar.
A partida é o momento em que sentimos que a vida não será mais a mesma, tanto para quem fica como para quem parte. E, com ela, perdemos a sublimidade existencial de cada momento, que acalentamos através dos anos, e que vive e se alimenta da proximidade de nossos entes-queridos, mesmo os que ficaram para trás, pela presença da morte. A única certeza que persiste em nós, na hora da partida, é a da saudade, nas horas, nos dias, nos meses e anos do futuro.
E como poderia ser diferente?
Sorrimos, quando estamos alegres. E choramos, quando estamos tristes. É assim que a vida define nossas emoções ante os olhos da própria vida. Podemos chorar de emoção pelas alegrias sentidas ou, sorrir, até mesmo pelas tristezas esquecidas.
É sempre a mesma coisa. E sempre será assim. É como o rio que corre, vale adentro, em direção do mar, deleitando-se com o rolar das pedras que alisa, no fundo de suas águas atormentadas. E o rio sempre chega ao mar. E o rio nunca se perdeu. E o mar sempre recebe o rio.
E, como poderia ser diferente, pergunto outra vez?
Como o dia voltaria, se a noite não partisse? E, como a noite embalaria nossos sonhos, se o dia não morresse? É morrendo que se renasce, tanto para a vida, como para a esperança.
E eu estava renascendo para a esperança.
Cada dia que passa é como se a vida sorrisse para nós, com um sorriso pálido de esperança, que a distância interpõe entre nós e o tempo, pela contagem dos dias. E, assim, vivemos, olhando o futuro, como se fora uma meta a alcançar cada dia, ansiando a proximidade de quem amamos e sentindo sua falta a cada instante.
É difícil suportar a dor da separação. É difícil compartilhar a vida com ela.
Quando meu filho saiu de casa pela última vez, vi-o distanciando-se pouco a pouco, cada vez mais, como uma solitária folha suspensa no espaço, e que o vento leva para longe e mais longe, até sumir na imensidão silenciosa do vale profundo, no horizonte do prado ou no topo da montanha escarpada, lá longe, no caminho do infinito de Deus.
E, então, meus olhos se encheram de lágrimas.
Meu coração sofreu mais do que todos os sofrimentos que sentira até então. Um sentimento difícil de explicar, com palavras de conforto ou resignação. Um sentimento difícil de definir, compreender e suportar. Um sentimento, terrível e cruel, machucando, sem piedade, o coração sofredor. E ali ficou, para no futuro partir, no crepúsculo da minha vida senil, ao encontro da eternidade.
Então, pensei:
Que dor pode ser mais forte que a dor da separação?
Que angústia pode ser maior, do que aquela que nos viu nascer, diante da face do sol e, depois, crescer e morrer, ante as estrelas de Deus?
Então, conclui que o dia da separação é o dia do encontro, pela dor e pela saudade. E que o sofrimento, é o caminho que nos leva às recordações e às esperanças, que ficarão conosco... Para sempre.
E, quando, finalmente, meu filho sumiu, lá adiante, na esquina da rua, percebi, nitidamente, que meu amor por ele cresceu na mesma proporção que a dor que sangrava meu peito e modificava minha vida presente. Mas, que renascia na ânsia de vê-lo sempre, como se nunca tivesse existido o dia da partida e o dia da separação.
E, então, bem devagar, olhando para além do semblante do tempo e da infinita bondade de Deus, fechei a janela, para pensar e repensar a vida, na esperança de esgotar a angústia daquele dia, quando meu filho saiu de casa.