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postado em: 11/9/2008
Passarinho do Brejo
Os pinguços que ficavam o dia (e a noite) em frente ao bar do “Zé Português” gritavam, em uníssono, quando ela passava, para provocá-la e vê-la ficar nervosa: “Piaçooca!... Perna de Serieema!.. Saracuura!... Passarinho do Breejo!...”. E ela, revoltada, revidava, xingando a mãe de todos.
Provocavam e riam da pobre moça, que morava com os tios, logo depois da outra esquina, no fim do quarteirão, no bairro São Geraldo, em Cariacica (ES). E ela, enraivecida pela provocação e o deboche, “elogiando” a genitora de seus provocadores e transferindo os adjetivos que lhe eram dirigidos, para a mãe de cada um deles, dizia: “É sua mãe, seu filho da .., aquela ...”.
E continuava seu caminho, esburrando de raiva e soltando todo o tipo de palavrões de que se lembrava no momento. E, se algum deles ousasse se aproximar, com mais gracinhas inoportunas, ela o enfrentava, “de igual para igual”, de “’homem’ para homem”, apesar da aparente fragilidade do seu porte físico.
Todo o dia, era a mesma provocação de sempre. Ela passava, eles a provocavam; eles a provocavam, ela revidava com palavrões impiedosos, retribuindo a mesma gentileza ferina, que produzia gargalhada em todos, inclusive, no “Zé Português”. Provocá-la era, além da cachaça, o divertimento diário deles. Retribuir as agressões verbais, a vingança dela.
Alguns dias depois, descobri o motivo das escaramuças verbais.
Olhando à primeira vista e vendo-a pela primeira vez, qualquer um a confundiria com um moleque de rua, pela maneira como se vestia: bermuda, camisa de malha bem apertada, tipo “machão”, tênis e boné. O boné, com o bico para trás.
Quando escutei, pela primeira vez, os estranhos “elogios”, achei que era o começo de uma briga de rua, comum entre alcoólatras inveterados. Assim que ouvi a gritaria, fui até o portão da empresa onde eu trabalhava, para saber o que estava acontecendo.
Mas, não vi briga nenhuma. Apenas, uma mocinha, morena e magricela, com aparência masculinizada, cuspindo fogo de raiva pela rua, xingando seus detratores, que riam e debochavam dela. E ela, resposta na ponta da língua, com adjetivos impublicáveis, ainda levantava a mão direita, fechada, e batia a mão esquerda no antebraço direito, em direção a eles.
Então eles, para irritá-la ainda mais, repetiam, em alta voz, as mesmas provocações de todos os dias: “Piaçooca!... Perna de Serieema!... Saracuura!... Passarinho do Breejo!...”. E caiam na gargalhada.
Como eu nunca tinha ouvido falar em “Piaçoca” ou, especificamente, “Passarinho do Brejo”, fui procurar saber o que era. Só me lembrava dos pássaros que sobrevoavam os arrozais alagados. Um dos pinguços, que era o líder da provocação, e já morreu de cirrose hepática (morre um a cada três meses, mas surgem outros quase que semanalmente), me disse que o “Passarinho do Brejo”, era um passarinho de pernas compridas, que voa rente às águas de rios, lagos e lagoas.
Então, descobri que a “Piaçoca”, era a conhecida Jaçanã, dos meus tempos de criança, na roça, uma ave ribeirinha, de peito avermelhado, cujo nome tem variantes como Nhançanã, Nhanjaçanã, Japiaçoca e, o da preferência deles, PIAÇOCA, nome pelo qual também é conhecida no Brasil.
A Sariema (ou Seriema), ou Chunga, eu conhecia. É uma ave dos sertões brasileiros.
A Saracura, além do nome de uma planta é, também, o nome de algumas aves que habitam pântanos, lagoas e rios, sendo mais comumente conhecida como Frango-d’água. Este, eu também conhecia. Como ansiávamos pegar um Frango-d’água, nos meus tempos de criança! Mas eles não nos deixavam aproximar.
E o “Passarinho do Brejo”, que tanto a deixava nervosa?
Pela compreensão deles, entendi que se referiam à Piaçoca mesmo, aquela ave de porte pequeno, pernas longas, que vive em pântanos, lagos e lagoas, à procura de alimentos. E, aí, compreendi o motivo do divertimento dos amantes do álcool a 48 graus.
Escutei muitas vezes os elogios que, a princípio, achei-os engraçados, pela característica da origem da provocação e que, de certa forma, me faziam rir também.
O que mais a enervava era ser chamada de “Piaçoca” ou “Passarinho do Brejo”. Isso ela não suportava. Ficava furiosa, muito furiosa. Parecia que, ao ouvir os nomes, era como se recebesse uma bofetada no rosto, de tão brava que ficava. Se pudesse, mataria todos, ali mesmo, em frente ao bar do “Zé Português”. Mas, como todos entendiam que a provocação era apenas uma brincadeira sadia (para eles), ninguém a levava a sério. Até o “Zé Português” e a esposa dele, riam, durante as rusgas diárias da “Piaçoca” com os pinguços.
Com o tempo, percebi que ela não ligava muito para os outros nomes. Mas, chamá-la de “Piaçoca”, seguido de “Passarinho do Brejo”, com risadinhas de sarcasmos e olhar de deboche pelo canto dos olhos, aí, também, era demais. Ela virava uma fera. Gritava, gesticulava, esburrava, cuspia, ameaçava, xingava... Mas eles, os detratores, em lugar de ficar zangados e partir para a agressão verbal, riam (e riam muito), o que a deixava mais furiosa ainda.
Conversando com o chaveiro que atendia à empresa, descobri que ela era sobrinha dele. O tio falou o nome dela, que depois esqueci, de sua masculinidade, e de como era excelente jogadora de futebol de campo, no time de uma cidade do interior, onde era considerada a melhor jogadora da equipe, e onde somente ela era mulher.
Um dia, encontrando-a na oficina do tio, passamos a conversar sobre os provocadores do bar do “Zé Português” e o motivo da sua raiva.
Fizemos amizade. Ela era boa de conversa. Mas, notei que ficava sempre na defensiva, à espera de que eu a chamasse, também, de “Piaçoca” ou de “Passarinho do Brejo”, para poder revidar.
Era muito atenciosa, cortês, mas desleixada na maneira de se vestir, sempre à “la homem”, sempre de bermuda, tênis e boné, com o bico para trás. Dedicava atenção especial e um ciúme doentio à bela filha do homem que eu chamava de “o mais velho do mundo”, o senhor Adão, que mora na rua atrás do bar do “Zé Português”.
E, como provocar os outros é a coisa que mais apreciamos, certo dia não resisti à tentação e passei a “provocá-la”, também, sempre que passava de carro, em frente à oficina do tio dela. Diminuía a marcha, olhava para dentro e, se ela estivesse lá, chamava-a, brincando: “Piaçoca!...”. E ela, sem querer saber se era brincadeira ou não, respondia: “É a m..., aquela v...!”. Então, eu, olhando nos olhos dela e, sorrindo, dizia: “Ooolha!... A mãe, não!”. E acrescentava: “Você é uma moça, cuidado com a linguagem”.
Quando ela olhava para mim, via-a com cara de “Piaçoca” e de “Passarinho do Brejo” mesmo, pela altura e magreza. Dava vontade de sorrir, deleitando-me com o resultado da provocação. Mas, com certa compaixão da fragilidade emocional, física e social dela, acelerava e partia, mas feliz, por ter provocado o “Passarinho do Brejo”.
Há dois anos não a vejo, muito menos os pinguços. Muitos já morreram. Mas, pela saúde que ela aparentava ter, é possível que ainda esteja jogando futebol no time do interior, fazendo muitos gols e ouvindo a provocação da torcida, a fim de incentivá-la e encorajá-la no jogo: “Vaai, ‘Piaçoooca’!...”. “Vaai, ‘Passarinho do Breejo!’”.
E eu, do meu canto, imagino-a revidando, com cara de poucos amigos, e a dizer, com o dedo médio em destaque ou com a mão direita, fechada, e batendo a mão esquerda no antebraço direito, em direção a eles: “É a mãe!..., aquela ... seus filhos de “uma boa mãe”...