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postado em: 31/10/2008
Minha Primeira Calça Comprida Eu tinha 12 anos de idade e nunca havia usado calça comprida ou sapato fechado. Já usara o Galupim, parecido com uma sapatilha. Mas detestava os tênis “Conga”, pretos, horríveis, um dos primeiros fabricados no Brasil. Tanto os galupins como os tênis “Conga”, eram considerados “sapatos de pobre”, assim como as calças Far west (precursora dos índigos da vida), as primeiras calças de jeans fabricadas no Brasil. Havia uma outra, a Rancheira, mas a Far West era melhor. Entre o primeiro e o segundo nome da Far West, tinha um cow-boy (vaqueiro americano), com seu cavalo empinado. Os galupins vinham nas cores preto, azul e verde, para os homens e, vermelho, para as mulheres. O tênis “Conga”, preto e branco. Meu desejo era possuir uma calça comprida e um par de sapatos fechados, mas de couro. Os galupins, com solado plano e fino, de borracha branca, e os tênis congas, com solado preto, eram de lona. O desejo de ter uma calça comprida não parava de colorir a minha imaginação de menino, muito menos a esperança de tê-la um dia. Vivia sonhando com a idade adulta e me vestir como os outros homens, usando calça comprida e sapato fechado de couro. Naquele tempo, as meninas usavam vestidos de tecido de chita e, os meninos, calças curtas, logo acima do joelho. O tecido mais comum era a gabardina cáqui, de algodão, aquele amarronzado, forte, que todo mundo usava, principalmente na zona rural. Colono que se prezava usava calça de cáqui e camisa de tricoline creme. Os mais pobres usavam calça de mescla azul. Os fazendeiros e políticos de destaque exibiam seus ternos de puro linho brancos de Diagonal S-120, o melhor que existia. Os bancários, Terilene, Tropical Maracanã ou Tergal Superpitex, que brilhava ao encontro com a luz. Nesse tempo, o sapato de qualidade era Vulcabrás, Passo Double ou Terra. O pequeno cartaz, pregado na vitrine da sapataria do João Belizário, ao lado do Bazar Rucas, de Jorge e João Saliba, dizia: “Todo brasileiro deve ter Terra”... O sapato. Não as propriedades rurais, tomadas do fazendeiro, como fazem atualmente os chamados “Sem Terra”. O casacão do vaqueiro era o grosso e pesado “Colonial”, de pura lá preta. Chapéus, muito usados à época, eram os das marcas Cury, Ramezoni e Prada. Os sutiens eram Alteza, Du Loren e De Millus, que lançou o famoso “Intermezzo”, meia-taça (para ser usado com e sem alça), rendado e com aro de ferro, para as mulheres que gostavam de vestidos ou blusas sem alças. Em 1965, logo após o lançamento do “Intermezzo”, testemunhei a abertura da primeira caixa do modelo, no Bazar Rucas. A brilhantina era a Glostora, Gessy, Coty ou Royal Brial; os perfumes, Atkinson, Helena Rubinstein, Coty e Myrurgia. Mas as mulheres logo se afeiçoaram aos produtos de beleza Dorothy Gray, de fina embalagem azul-água. Esmalte de unhas era Cutex e Coty; sabonete era Myrurgia, Phebo ou Fosly. Homens vaidosos usavam Aqua Velva, após a barba. Roupa chique para as mulheres eram os vestidos de seda pura Surá ou Amorella, saia plissada ou os conjuntos Ban-Lon. Para os homens, a camisa Volta ao Mundo. Quem fumava, usava isqueiro Ronson. Ambulância era a “Assistência”; ônibus, “Marinete”. E Crow, a marca do radinho de pilha, portátil. Na sapataria do Antonio “Pranchão”, em frente à Casa Dedé, passei a namorar uns sapatos marrons, de bico quadrado, expostos no balcão/vitrine, logo na entrada da loja. Todos os dias eu passava em frente à loja do Antonio “Pranchão” e ficava ali, olhando, sonhando e viajando no tempo... Para depois ir para casa com água na boca, com uma vontade enorme de possuir aqueles sapatos marrons de bico quadrado. O preço estava anotado num pequeno cartão, amarrado no cordão: CR$ 400,00 (Quatrocentos Cruzeiros). Era muito dinheiro naquela época. Um dia, tive coragem e falei com a minha mãe sobre os tais sapatos e de quanto desejava tê-los. Ela, por sua vez, ficou calada. E eu, meio sem jeito, fui curtir meu desgosto de menino em um canto da casa, sem comentar nada com ninguém. Não tenho muita certeza, mas, acredito que isso foi no mês de junho ou julho de 1959, e meu aniversário só se daria daí a quatro meses, no mês de novembro. O tempo passava e a vontade de ter os sapatos aumentava. Sonhava “acordado” com eles, de tanta vontade que tinha de possuí-los. Via-me a andar pelas ruas, todo garboso, desfilando pela calçada da Praça Augusto de Carvalho, a principal, em volta do Restaurante e Confeitaria Maringá, do “Seu” Vadinho, que ficava no centro da praça da pequena cidade. Vadinho mora atualmente na cidade de Vila Velha/ES, e é dono do famoso “Recanto Baiano”. Estudava o curso primário com minhas duas irmãs mais velhas, Ione e Mírian, no “Grupo Escolar Municipal”, em frente ao famoso Ginásio Alfredo Dutra, onde depois, para continuar os estudos, cursei o Admissão, o “vestibular” obrigatório de acesso ao antigo curso Ginasial. Já em outra escola, perto da nossa casa, completei o curso Primário, na metade do ano, quando os outros alunos só conseguiram no final. No mês de agosto matriculei-me no curso de Admissão do Ginásio Alfredo Dutra, um grande colégio internato/externato que, já naquele tempo, funcionava nos três turnos. Fiz o curso no período noturno, que durava um ano, em apenas quatro meses. Estudei, prestei os exames no final do ano e passei no “vestibular” para o curso Ginasial. Os alunos do nosso colégio foram “convocados” para desfilar. Nunca tinha participado de um desfile. Até então, eu ficara apenas observando os alunos marchando, as alas, os professores, a graça das “Balizas” - belas moças que vão na frente da banda, marcando o ritmo da marcha, ao som da bateria, cabeça erguida, pescoço espichado e o olhar radiante, fazendo graça com um bastão colorido, sendo alvo dos olhares de familiares e admiradores, pelo vestuário enfeitado, distribuindo sorrisos de deslumbramento. E, atrás delas, vinham os alunos, como soldados de verdade, com um professor corrigindo o compasso, como se fora um sargento de instrução. Fiquei sabendo que ia participar dos desfiles daquele ano. A “Farda” de cáqui, que minha mãe me deu, era parecida com a dos militares, como meu tio João, irmão do meu pai (daí o motivo do nome – farda), com blusão curto, à altura da cintura. Fiquei tão contente com a novidade, que mal disfarçava a vontade de desfilar, mesmo antes do dia 07 de setembro. Finalmente o tão esperado dia chegou. Todas as escolas se encontraram às nove horas, na Praça Dr. Guilherme Dias, de onde saíram em formação até chegar ao Ginásio Alfredo Dutra, duas horas depois. E eu estava lá, com minha farda cáqui, mais parecendo um militar mirim, do que um aluno de escola primária. Só faltava a boina, o casquete ou o quepe. Aquela foi minha primeira participação num desfile escolar. E, também, a primeira calça comprida e o primeiro par de sapatos, com cordão, que usei. Mas ainda não era o de bico quadrado. Infelizmente, não completei o percurso com os sapatos nos pés. Na metade do caminho, com os calcanhares cheios de bolhas e os pés doloridos, sai de formação e parei na porta de um sobradinho de dois andares, em frente à agência da Real Aerovias Nacional. Sem conhecer os moradores, subi a escada e pedi à senhora que me atendeu, se eu podia deixar, ali, os sapatos, para apanhá-los na volta, pois queria completar minha primeira participação num desfile de 07 de setembro. Ela concordou. Desci a escada, entrei em formação novamente, agora descalço, marchei até o Ginásio Alfredo Dutra e completei o percurso. Na volta, peguei os sapatos, amarrei os cordões, joguei-os nas costa e fui para casa. Foi a primeira vez (e acho que a última) que usei a farda (não era obrigatório o uso nos dias normais de aulas). Tanto a calça quantos os sapatos logo não serviram mais para mim. Cresci, mas eles continuaram do mesmo tamanho. Por muitos anos a pequena farda ficou guardada num baú, como lembrança da minha primeira calça comprida, do meu primeiro par de sapatos e da minha primeira participação num desfile de 07 de setembro. Trinta anos depois, em 1989, com 42 anos de idade, em uma das vezes que visitei a cidade onde vivi parte da minha infância, fui até a rua onde existia a sapataria do Antonio “Pranchão”. A loja agora era outra e de outro dono. Coloquei-me no mesmo lugar de 30 anos atrás (em 1959) e fiquei olhando o espaço onde antes estivera o balcão/ vitrine, agora com um cesto de bolas de plástico coloridas. Foi como se olhasse para o “meu” par de sapatos de bico quadrado, que não cheguei a possuir. A emoção tomou conta de mim. Saí dali e andei pela calçada até a primeira esquina. Dobrei à direita, em frente ao antigo armazém do José Pithon e desci a rua, para rever o sobradinho de dois andares, onde deixei os sapatos, naquele longínquo 07 de setembro de 1959. Parei diante da porta, para olhar e recordar os tempos passados, quando eu era menino e desfilei, com orgulho, pela primeira vez. Ali, parado, olhando e recordando, a emoção tomou conta de mim. Na minha mente vieram imagens de meninos, que se tornaram homens e, de homens, que eram meninos; de meninas, que se tornaram mulheres e, de mulheres, que eram meninas. Alguns tinham morrido. Nomes como Geraldo, Ione, Mirian, Ranulfo, Magali, Marizete, Nalva, Miranita, Antonia, meus primos Lúcia e Dório, estavam lá, projetados na tela da minha imaginação, como a acender velas apagadas pelo tempo. Nesse momento, uma lágrima desceu silenciosamente pela minha face, ao viver tudo outra vez. Ainda me lembro da mulher alta que me atendeu, com seu vestido florido de vermelho, sorrindo atenciosamente, recebendo meus sapatos e olhando-me descer a escada de cimento avermelhado, até sumir e, novamente, entrar em formação e marchar, agora, com os pés descalços, mas orgulhoso e feliz. E, quando olhei com mais atenção, do primeiro ao último degrau da escada, por onde subi e deixei os sapatos pretos, fechados, a saudade encheu meu coração de angústia e mais recordações. E mais uma lágrima escorreu pelas minhas faces, tensas de saudades, emoção e contentamento, misturados a um inebriante sentimento de ternura e dor, pelas lembranças do passado. Eu estava ali, 30 anos depois (se fosse este ano - 2008, seriam 49 anos), no mesmo lugar, na mesma casa, na mesma rua e na mesma cidade, recordando o tempo que passou, mas que deixou a grata lembrança da surpresa da minha mãe, ao presentear-me com a primeira calça comprida e o primeiro par de sapatos fechado que usei... Para marchar pelas ruas da cidade, como um destemido soldado mirim, imaginando ser grande, e que vai e volta em triunfo da guerra, com os louros cívicos da vitória, que imaginou um dia e sonhou ganhar. Obrigado, Dona Artêmia! [minha mãe].