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postado em: 24/11/2008
Tatau, Furinga e Seu Formiga Tatau ou “Catatau”, como também era chamado, para zombar dele; Furinga ou “Cafurina”, seu irmão, eram filhos do “Seu” Formiga. Tatau era mais velho, mais forte, mais alegre e, num certo sentido, meio abobalhado. Já o Furinga, o mais novo, com o rosto bem formado, mais compenetrado e meio ranzinza, não era muito de brincadeiras. Ele aparentava ser mais esperto do que Tatau, que andava com um sorriso no rosto e batendo no peito com os dedos indicadores de ambas as mãos, como a batucar um samba-moleque, ou alguma canção popular de seu tempo. Não sei por que, mas ele andava sempre sorrindo e apressado. Tinha as pernas tortas, com os joelhos voltados para dentro. Parecia uma criança, no corpo de um adolescente. Mas era feliz e todos gostavam dele. Nunca soube seus verdadeiros nomes. Também nunca soube o “por que” dos apelidos. Só os conhecíamos como Tatau, Furinga e “Seu” Formiga. Ah!... Acho que a professora “Sinhazinha”, da escola onde os dois estudavam, sabia. Moravam perto da nossa casa, logo após dobrar a esquina e subir a rua. Andavam sempre juntos, sempre amigos, companheiros. O “Catatau”, na frente, batendo os dedos indicadores no peito, alegre e feliz, como se o mundo fosse apenas aquele, cuja visão dele ele tinha somente. E o “Cafuringa”, atrás. Era muito engraçado vê-los, quando passavam em frente à nossa casa. Dulce, que vendia “água potável” (tirada diretamente do rio, cujo esgoto era despejado “in natura” e onde a molecada tomava banho diariamente), morava na casa em frente à nossa, do outro lado da rua. Ela gostava de vê-los passar. Tatau sorria para ela e, ela, para ele. E não passava disso... Dulce vivia à espera do seu “príncipe encantado”, que sonhava chegar um dia. Mas, pela maneira como se comportava com os rapazes, que tinham medo dela (pela força nos seus braços), o “príncipe” não era o Tatau. Ambos eram da mesma altura, com o mesmo porte físico, mas ela era mais velha. Na então pequena cidade de Itapetinga, no sul da Bahia, pouca coisa havia para se fazer depois das aulas. Durante uma parte do dia, todos estudavam e, à tarde, os meninos soltavam pipas, brincavam de pião ou tomavam banho no rio, que passava pela cidade. À noite, o único passa-tempo era passear na Praça Augusto de Carvalho, dando voltas e mais voltas pela calçada do Restaurante e Confeitaria Maringá, e, depois, na Praça Dary Valley, onde fica a Prefeitura, até as 21 horas. E, então, tudo acabava: as portas dos dois cinemas fechavam, os donos do Bazar Rucas fechavam a porta de aço das vitrines... Como não havia televisão, todos iam para casa dormir, ouvindo músicas pelo sistema de som do Álvaro, hoje conhecido como “Rádio Poste”, que sempre tocava, até as 22 horas, o mesmo disco de vinil do Trio Iraktan, privilégio apenas para os que moravam no centro e proximidades. Os notívagos e libertinos varavam a noite nas casas de “má fama”, até o dia raiar. Tatau era muito engraçado. A gente ria dele por achá-lo com cara de bobo. E ele, retribuindo o sorriso, via-se no paraíso, por acreditar ser importante. O Furinga era mais esperto, mais danado. Era quase a metade da altura do Tatau, mas não gostava de brincadeiras. Um dia, Tatau e Furinga deixaram de passar em frente à nossa casa. Um dia, dois dias, três... Nada! Depois, ficamos sabendo que, sem alarde, o Tatau foi para São Paulo, para trabalhar e ganhar dinheiro. Ficaram Furinga e “Seu” Formiga. Passaram-se sete meses. Uma bela noite, lá pelas 19 horas, a rua se alvoroçou. A notícia correu de boca em boca, de porta em porta e de ponta a ponta da rua, como sempre acontece em cidades do interior: “TATAU CHEGOOU!... TATAU CHEGOOU!...” Era o murmúrio que cortava a noite e se ouvia nos quatro cantos do bairro Camacã, vizinho ao centro. Pessoas correram para a rua, para ver seu “ídolo” passar. Portas e janela abriram, moças disputavam lugares na calçada, curiosas, para ver o Tatau, todo orgulhoso, cheio de si, como que ostentando uma coroa de ouro na cabeça ou segurando um cetro, como se fora um galante rei. Quando cheguei à calçada, ele dobrava a esquina em direção à sua casa, feliz, radiante, agora, sem bater com a ponta dos dedos no peito, como fazia antes. Tinha mudado um pouco. Havia crescido, engordado e sua aparência era outra. Estava vestido de terno e gravata, um terno de cor “chumbo”, para mostrar sua vitoriosa passagem por São Paulo, num curto período de sete meses apenas. Levava na mão uma mala, com presentes para a família. Todos se admiravam em vê-lo vestido assim. Até a Dulce, que não parava de sorrir. Poucos dias depois, após visitar amigos e parentes, sempre de gravata e terno “chumbo”, Tatau voltou para São Paulo. E nunca mais o vi. Anos depois, em uma das poucas visitas que fiz à minha cidade natal, perguntei pelo Tatau, Furinga e “Seu” Formiga. Disseram-me que “Seu” Formiga e Tatau tinham morrido; e Furinga, estava morando há anos na cidade de São Paulo, onde eu morava também, seguindo os passos do seu irmão mais velho. E, por isso, não pude mais vê-los. Quando soube da morte do Tatau, fiquei triste por alguns dias, relembrando nossa vida numa cidadezinha do interior, no começo da segunda metade do século passado. Ninguém soube me dizer como ele morreu. Apenas, que “tinha morrido”. Depois de muito perguntar, alguém daquele tempo me disse, de acordo com sua crença religiosa, que “Tatau foi morar no Céu e agora está falando e sorrindo com Deus”. Estas palavras me deixaram em desânimo total ante a vida, que tinha deixado Tatau ir embora duas vezes, em tão pouco tempo: para São Paulo (onde foi trabalhar), e para o Céu (onde foi morar), conforme soube depois. E perguntei, no silêncio da minha dor: “Como pode um jovem morrer assim, tão cedo, como o Tatau morreu?”. Sempre gostei daqueles dois irmãos, meus primeiros amigos de infância. E, cada vez que me lembro do Tatau, é como se o visse passando pela rua, alegre, batendo com a ponta dos dedos indicadores no peito, sorrindo para a Dulce e soltando alegrias no ar. E, então, relembrando as palavras que ouvira quando lá estive, que “Tatau foi morar no Céu...” e agora estava “falando e sorrindo com Deus”, pensei: “É, ele foi morar no Céu, falar e sorrir com Deus, e ficamos a acender fogueiras, nas noites de São João”. Até breve, Tatau!