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postado em: 27/2/2009
HAJA O QUE “HAJAR”
José Francisco dos Santos, a quem todos chamavam de “Zé Francisco”, era uma figura simples e divertida. Conheci-o, quando trabalhava no Alto Médio São Francisco, entre as cidades de Pirapora e Manga, até Itacarambi, abaixo de Januária-MG, onde navegava a antiga lancha Luminar II. Mas nunca trabalhei embarcado. Tinha à época seus 20 anos e pouca cultura, advinda, unicamente, do seu conhecimento do chamado “povo ribeirinho”, que vivia às margens do “Velho Chico”.
Durante o ano de 1967 morei na cidade de São Francisco, à margem direita do rio, como secretário do Posto de Saúde da Assistência Social Adventista, que tinha um nome pomposo: Sociedade para Desenvolvimento de Saúde - SODESA.
Radical, “Zé Francisco” criticava a Bossa Nova, o movimento rebelde de renovação da música (e da pintura também) popular brasileira, com ênfase principalmente no samba, surgido no Brasil, para concorrer com os ritmos americanos e europeus, principalmente os Beatles, com aparecimento de novos estilos, do vestuário ao modo de viver. Era a época dos cabeludos e das calças boca-de-sino. E ele, sorrindo, abominava e esculhambava tudo. Afinal de contas, era solteiro e não tinha nenhuma moça para agradar ou fingir que agradava.
Os jovens “malucos”, cabeludos, rebeldes e alegres da iniciante Jovem Guarda, eram chamados de Play Boys. Mas, para ele, que tropeçava no vernáculo e nas palavras inglesas, eram “Pré Bóis”. E não adiantava dizer que estava errado. “Errado” era quem o corrigia. Expressões como “Play Boy” ou “Play Boys”, “Pode deixar”, e palavras como “Claro” e “Vamos”, para ele eram “Pré Bói”, “Pré Bóis”, “Pó’dexar” , “Craro” e “Vamo”.
Quando o conheci, ele morava em Remansinho, uma pequena fazenda na foz do rio Paracatu, na margem esquerda do Rio São Francisco, onde o missionário norte-americano Leslie Charles Scolfield Jr., com quem trabalhei um ano e meio, estabelecera uma espécie de internato, para alunos carentes e órfãos. Remansinho, ficava entre as cidades de São Francisco e Maria da Cruz, ambas na margem direita do Rio São Francisco. Extinto o internato, virou uma fazenda comum, com outros proprietários.
Era o tempo da “Aliança para o Progresso”, um programa de desenvolvimento cooperativo de ajuda humanitária, criado em 1961, pelo então presidente dos Estados Unidos da América, John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), e aprovado por mais 22 países, para acelerar o desenvolvimento econômico e social dos países latino-americanos.
Num certo sábado pela manhã, após a Escola Sabatina e o Culto, o missionário chamou-nos a um canto e disse que, às 15 horas, haveria uma reunião e que deveríamos comparecer. “Zé Francisco” ficou calado, só olhando para ele, no seu jeito matreiro e radical de ser. Para concluir, percebendo sua indiferença, o missionário virou-se e fulminou-o, com a seguinte confirmação e pergunta:
- “’Zé Francisco”, não esqueça: a reunião será às 15 horas. Você vem ou não vem?”
E ele, que morava uns três quilômetros do local, de pronto, respondeu:
- “Pó’dexar, Dotô, estarei aqui às 15 horas...”.
E soltou, com o peito estufado e um largo sorriso no rosto, achando que abafava de sabedoria, esta pérola, que merece ser gravada em letras de ouro nos anais da história da Língua Portuguesa: “...HAJA O QUE HAJAR!”.
Todos caíram na gargalhada, inclusive o missionário.
Desse dia em diante, “Zé Francisco” passou a ser o divertimento preferido dos gozadores de plantão de Remansinho. Toda vez que alguém o encontrava, ia logo provocando:
- “Zé Francisco”, vá até a horta pegar uns pés de alface e volte logo...
E complementava, zombeteiramente: “HAJA O QUE HAJAR”.
E muitas outras brincadeiras faziam com ele, sempre envolvendo a palavra “hajar”, deturpada no tempo e no modo do verbo Haver.
Esse acontecimento se deu em 1967.
Em 1988, 21 anos depois, eu estava na cidade de Baixo Guandu-ES, em mais um final de semana de trabalho, como diretor dos Departamentos de Educação e Comunicação da Associação Espírito-Santense da IASD, em visita programada à região. Era sábado, o mesmo dia, como há 21 anos. Mas, desta vez, eu era o pregador.
De repente, do púlpito, avistei um senhor no meio dos ouvintes, vestido modestamente, que despertou a minha atenção. Olhando bem, conclui tratar-se do mesmo José Francisco dos Santos, o “Zé Francisco”, que eu conhecera no Remansinho. E, depois de muito observá-lo, concluí ser ele mesmo. E era. Após o sermão, ao despedir-me dos irmãos, à saída da igreja, fui cumprimentá-lo. Olhei para ele, para certificar-me mais uma vez se era ele ou não e, ele, da mesma maneira, olhava para mim.
De pronto perguntei: “Você é o José Francisco, não é?”.
Ele respondeu afirmativamente.
Então nos abraçamos, sorrimos, conversamos sobre aqueles tempos passados no Vale do São Francisco, os amigos de então e o trabalho que fazíamos lá. Disse-me onde estava hospedado, onde vivia e o que fazia no momento. Foi uma alegria muito grande revê-lo. Mas, continuava solteiro, radical, crítico e sem nenhuma moça para agradar ou fingir que agradava.
Por ironia do destino, eu tinha marcado outra programação para as 15 horas, o mesmo horário de 21 anos atrás. Pura coincidência. Disse a ele que, à tarde, daria continuidade à programação e que ele estava convidado a participar. E, como a provocá-lo, fazendo-o recordar-se dos tempos passados no Remansinho, disse-lhe:
- “Quero você aqui, à tarde, às 15 horas, ‘haja o que hajar’”.
Ele sorriu meio sem graça, encabulado, como a relembrar àquela época no Rio São Francisco; mas, ciente de que eu jamais esquecera aquele fato, adormecido com o passar do tempo, mas que despertara, ao vê-lo, 21 anos depois. Por fim, convidei-o para estar conosco. E disse, pela segunda vez, olhando bem nos olhos dele, desta vez, sorrindo, acrescentando seu nome à frase, enfatizando o verbo QUERER no modo imperativo e deturpando o tempo do verbo HAVER, na forma gramatical, como ele fazia: “Zé Francisco, quero você aqui comigo, à tarde, às 15 horas, ‘HAJA O QUE HAJAR’”.
Divertido e enigmático, olhou-me de soslaio, como que voltando ao passado e recordando tudo, compreendendo aquele momento de sua vida, como uma lembrança imorredoura que sempre o acompanhava, à medida que encontrava um antigo companheiro de trabalho no Remansinho. Sorriu, feliz, à frase que ouvira, e disse que voltaria. E, de fato, voltou.
Ao nos despedirmos à tarde, após a programação, fui até o portão da igreja para vê-lo partir, distanciando-se cada vez mais e para longe.
Fiquei olhando para aquela simples, mas grande figura humana, distanciando-se pela calçada e desaparecendo lentamente, para um tempo indeterminado da vida. Dobrou a esquina da rua e sumiu para sempre. Perdeu-se na nuvem silenciosa das horas e na bruma misteriosa do tempo, como no prólogo de Hellen Ferro, ao descrever, em 1966, a morte de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), autor de O Pequeno Príncipe, na publicação em espanhol de Ciudadela, a obra inacabada que Exupéry dedicou a seu pai (não foi traduzida em Português).
E passou a ser uma dessas figuras que amamos, que jamais esquecemos, que fica em nosso coração todos os dias e no calendário do tempo para sempre. E nunca mais soube dele. “Passou a ser um desses passageiros do céu que a qualquer momento pode converter-se em lenda”, como disse Hellen Ferro.
Foi a última vez que o vi. Isso foi há 20 anos. Mas, à medida que se distanciava, imagens e situações iam e vinham, avolumando-se em minha mente, em meu coração, em minhas lembranças das coisas, das pessoas e da vida que ficou para trás. Voltei ao passado e vi, nas lembranças de minha vida de jovem, repetida, a mesma cena do “Zé Francisco”, lá no Remansinho, empertigado e confiante, diante do missionário, com seu jeito simples, caipira e simplório, teimoso e nervosinho de ser, divertindo a todos com seus deslizes semânticos, que acreditava serem corretos.
Não sei se ainda vive ou se já morreu. Só sei que, às vezes, em meus sonhos e em minhas lembranças do Remansinho, ainda o vejo, passeando na nuvem silenciosa das horas e na bruma misteriosa do tempo, debochando da Bossa Nova, da Jovem Guarda e dos “Pré Bóis” que encontra pela frente.
E, então, ouço-o dizer, empertigado e confiante, crítico e ranzinza, sorrindo inocentemente, prometendo que vai voltar, com as seguintes e divertidas palavras de sua sabedoria ímpar, mas, maltratada pela impiedosa imposição da gramática, que não perdoa o deslize dos incautos:
- “Pó’dexar, Dotô, estarei aqui às 15 horas. HAJA O QUE HAJAR’”.
Obrigado, “Zé Francisco”, onde você estiver!