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postado em: 10/5/2009
Quando eu era adolescente, na época dos meus 12, 13 anos, havia um casal de idosos que morava em uma casinha simples de alvenaria e um cômodo só, ao lado da nossa casa. Era “Sena” e “Véi Zé”, como todos os chamavam. Ela era negra, magra, alta e andava meio encurvada. Ele, de cor clara, baixo, encurvado também. Ela era bem mais alta do que ele.
“Sena” sofria com paciência a pobreza, que a castigava ano após ano. Todavia, nunca reclamava da vida nem menosprezava sua existência. Era reservada e discreta. Nunca murmurava nem punha a culpa em alguém, pelo sofrimento, que vinha de longa jornada. Vivia como se o mundo todo fosse uma bênção para ela, mesmo com a pobreza, impiedosa, batendo à sua porta todo dia e castigando-a sem compaixão.
Contrapondo-se à paciência de “Sena”, havia a impaciência de “Véi Zé”. Ele era ranzinza por natureza. E, acima de tudo, birrento.
Constantemente ela estava lá em casa, conversando com a minha mãe, Dona Artêmia, de quem gostava muito. Minha mãe ouvia com paciência as confidências de “Sena” e a ajudava, sempre que podia. Os outros vizinhos a ajudavam também. Dos lábios de “Sena”, cujo verdadeiro nome nunca soube, jamais saiu um impropério, uma reclamação, uma única queixa sequer contra Deus ou os homens. Vivia reclusa em seu mundo e seus pensamentos de solidão, que somente ela sabia definir e a vida explicar. E, tanto quanto sabíamos, não tinham parentes, pois nunca recebiam visitas de fora. Apenas os amigos dali mesmo que, como minha mãe, os ajudava.
“Sena” andava encurvada pelo peso da idade, que nunca revelava a ninguém. Já era velha, quando a conheci. Mas, lembro-me, nitidamente, de seu rosto sereno, vincado pela impiedosa ação do tempo sobre ela. Vivia sempre com um pano branco amarrado à cabeça, à semelhança de um turbante de uma pobre mulher afegã, dos arredores de Cabul, capital do Afeganistão. Cobria com ele os cabelos grisalhos, que a cada dia ficavam mais grisalhos ainda, mas que ela mantinha sempre limpos e penteados, debaixo do turbante. Nutria respeito e era respeitada por todos. Vivia para “Véi Zé” somente. Só saía da pequena casa para conversar e receber ajuda dos vizinhos. Quando não aparecia, os vizinhos iam à casa dela, saber se ela estava doente. Minha mãe, era a vizinha preferida e o “confessionário” cotidiano dela. Todos os dias ela estava lá em casa conversando com a minha mãe, aconselhando-a e dela recebendo conselhos.
“Véi Zé” (seu verdadeiro nome era José) era de estatura mais baixa, porém, mais encurvado. Como eu disse, ele era de cor clara, magro e, tal qual “Sena”, reservado na sua maneira de ser. Andava sempre com um surrado chapéu de palha na cabeça e apoiado num cajado envelhecido, como se apoiasse em “Sena”, como se fosse uma figura bíblica, um Moisés, um Abraão, nos primórdios bíblicos do povo de Deus ou, talvez, um João Batista, nos tempos de Jesus Cristo.
Mesmo ranzinza, não podia viver sem “Sena”. Malcriado em demasia, nervosinho e ciumento, era de poucos amigos. Por isso, vivia sempre de cara amarrada, birrento. E, devido ao seu comportamento agressivo, a criançada se aproveitava, para provocá-lo, nas poucas vezes que saía de casa. Isso a “Sena” falava e a gente sabia.
E o tempo passou.
Anos depois, ao visitar minha família, na cidade onde passei parte da infância, soube que “Sena” e “Véi Zé” tinham morrido. Primeiro ele; depois ela. Ele, na pequenina casa; ela, no asilo que a Prefeitura mantinha para os pobres. A pequenina casa não existia mais. Em seu lugar havia outra, grande, bonita, ocupando o terreno todo. Nada sobrou da antiga casinha de apenas um cômodo, simples e de telhado de uma água só, que lembrasse “Sena” e “Véi Zé” morando ali.
Senti saudades da velha “Sena”, uma “santa mulher”, que apesar da pobreza, era resignada, humana, bondosa, atenciosa e gentil, não apenas com a minha mãe e suas demais amigas, mas com as crianças também.
Ela morreu sem ver a riqueza material adentrar à sua porta. No entanto, tinha uma grande riqueza interior para dar, que ela distribuía para todos, todos os dias, sem nada pedir em troca: sua bondade e amizade, seu amor e sua sinceridade, que brotavam do coração, acompanhados de um sorriso sem graça, num rosto triste e sofrido, mas encantador e sincero, que todo mundo via e amava.
Soube que, quando morreu, todos sentiram sua falta, sua definitiva partida desta vida, e choraram muito por ela. De “Véi Zé”, apenas lembrei-me dele. E, pelo que tinha aprendido e ouvido da convivência dele com ela, concluí que, àquela época, “Sena” estava sorrindo, estava feliz, mesmo andando encurvada nas nuvens, como aprendemos à época, sem terra para os pés apoiar. E “Véi Zé”, fazendo birra pra ela.
Senti muito pela morte de “Sena”, pois ela fazia parte da vida da minha infância, que tinha ficado para trás, em anos, meses, semanas e dias que foram para o passado e que, naquele momento da minha vida, eram apenas recordações dolorosas.
Olhando para a nova casa, no lugar onde antes existiu a casinha de “Sena” e “Véi Zé”, meus olhos também se encheram de lágrimas de saudade. Minhas lembranças do passado tomaram forma em minha mente e alma sofredoras, como o lamento triste do coração, ao recordar os tempos passados e os momentos vividos, sublimes, queridos, que não voltam jamais. Um lamento, à semelhança do lamento triste do sereno de uma noite só, caindo calmo, devagar, sobre montanhas silenciosas e vales adormecidos, que insistem querer dormir, para o Sol poder chegar.
E eu, saudoso da velha “Sena”, sentei na calçada, para relembrar a vida de outros tempos, o tempo que foi embora, deixando um rastro de tristeza, saudade e solidão no meu coração e no coração de todos que a conheceram. E, então, com a alma extravasada de angústia e o coração atravessado pela dor, pensei: “’Sena’ entrou para o Céu e ‘Véi Zé’ foi fazer birra para ela, sentado à porta de sua nova casa, para vê-la se pentear”.
Velho birrento!
Fernando de Almeida Silva
Editor Associado
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