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postado em: 4/8/2009
Lembranças do Meu Pai Quisera ter passado mais tempo com meu pai, Otaviano Ferreira Silva, principalmente na época em que eu era menino. Seria mais reconfortante, viver as lembranças do começo da vida, sem as torturas dos dias do crepúsculo da própria vida. Seria mais reconfortante, se elas fossem tão brilhantes e coloridas, como eram o céu e as primaveras de então, cujas recordações são como o dia de ontem, que passou, e o desejo de vê-lo, que ficou. O conforto, para a alma, é que ficaram, não somente a presença dele, nas minhas lembranças do passado, mas, também, as sutis recordações de uma época maravilhosa, que o tempo eternizou no meu coração. Ficaram, não somente as lembranças dos momentos felizes, que passamos juntos, mas, também, a beleza da vida de menino, cujos fantasmas, libertos, sempre batem à porta desse coração, fazendo-me viver tudo outra vez, no cantinho silencioso da intensa saudade, que ele deixou. Quisera ter brincado com ele muitas vezes e, ele, comigo, num pequeno espaço de Sol da manhã ou, na sombra do cair da tarde, do verão que tremia a terra, lá longe, onde as tristezas se dobram à alegria e, a dor, à candura, até o coração extasiar-se de felicidade. Quisera ver essas marcas indeléveis em meu coração, como cicatrizes, que a alma não sente e o corpo, não tem vergonha de mostrar. Essas marcas que o passar dos anos não desfaz, mas, as prolonga para toda a vida. Mesmo que essas cicatrizes sejam sonhos silenciosos, em minhas noites eternas, de viver, pensando que vivi. Mesmo que essas cicatrizes sejam como os tempos da eternidade, que a gente nunca vê, mas sabe que existe, está no futuro e sonha com ela todas as noites. Quisera vê-lo, ainda que em sonhos de alguns instantes somente, segurando minha mão pequenina, como se fosse um troféu valioso, que ganhou e não quisesse perdê-lo. Quisera ainda vê-lo, se possível fosse, no último instante supremo da vida, fugidio e único, um rapidíssimo intervalo de tempo, que chega depressa, passa diante de nós e vai embora correndo. E vê-lo, num momento mágico, cujo sussurro da vida só o coração de pai e filho pode sentir, para coroar a eternidade dos meus desejos de adulto que, quando menino, segurava a mão de seu pai. Quisera que esse “instante supremo da vida” voltasse num momento mágico, sutil, encantador, na beleza das horas e na constância do tempo, como meu último e glorioso sonho: encontrá-lo de novo, após sua última e definitiva viagem na Terra. Esse é me desejo. Meu sonhado e acalentado desejo. Mas, enquanto esse “instante supremo da vida” não chega, vivo das lembranças dele e dos momentos felizes que passamos juntos. Que são lembranças? São recordações de fatos localizados da vida, que a memória guarda e, depois, aflora, para vivermos tudo outra vez, no juízo de tempo, onde tudo se passou. Em certos momentos, as lembranças podem ser uma tortura para a vida. Em outros, uma dádiva para ela, um presente inesquecível do passado, para confortar o coração. É como se o subconsciente anotasse e lesse todos os nossos atos na memória e, depois, com o passar dos anos, lesse tudo outra vez, um a um, e os libertasse nos momentos mais cruciantes da vida, fazendo-nos reviver tristezas e alegrias, amor e ódio, sorrisos e lágrimas, como num retorno mental anterior. As lembranças são diferentes das reminiscências, embora estejam no mesmo plano psicológico de interiorização da mente e complexidade da alma humana. Essa diferença é conhecida pelo que chamamos de juízo de anterioridade, que nas reminiscências existem, mas inexiste nas lembranças, visto serem as reminiscências efervescentes fenômenos da memória. O elemento “juízo de anterioridade” foi um termo proposto pelo filósofo francês Edmond Globot (1858-1935), autor de obras como Vocabulário Filosófico (1901), Justiça e Liberdade (1902) e Ciências (1921). As lembranças são mais cruéis para a alma, quando vividas, tendo, como ponto de partida, os sofrimentos localizados do coração e as cicatrizes que a vida nele deixou. A localização é a melhor conceituação das lembranças ao elemento “juízo de anterioridade”. Já as reminiscências, parecem evocar uma indelével suavidade dos momentos mais marcantes da vida, que deixaram suaves evocações de clamor da alma, para sua calma interior. As lembranças são mais sofredoras; as reminiscências, mais sublimes. Lembranças são coadjuvantes da memória; recordações, do coração; embora ambas, no plano recordativo, sejam as mesmas testemunhas, vividas ao mesmo tempo da vida. Platão (Atenas, 428-7 – 347 a.C.), o grande filósofo grego, já defendia que as reminiscências é a memória que o homem tem, nesta vida, das idéias, inatas e anteriores a toda sensação, contempladas numa vida anterior, no plano puramente espiritual. As lembranças e os sonhos Às vezes começamos um relato com um “Naquele tempo...” ou, “Naquela época...”, querendo, com isso, reviver as lembranças que marcaram nossa vida e encheram nosso coração de saudade. Essas evocações do passado são recordações... Lembranças... Reminiscências, que nunca esquecemos e que a memória guarda para sempre, para atenuar os anseios do coração. Viver de lembranças é o suplício mais assustador da alma. É como se vivêssemos duas vezes as emoções de uma única e mesma vida, no mesmo intervalo de tempo, no coração, mas, com emoções, alegrias e sofrimentos, para cada tempo vivido. Quando olho para o passado e vejo a época maravilhosa em que vive minha infância, é como se todas as estações da vida se curvassem à quietude das florestas, para eu poder ouvir os sons da alma, como no filme de Kirsten Sheridan, “August Rush”, que no Brasil foi traduzido como “O som do Coração”. Ou, então, sentir o mesmo desejo do “Dr. ‘Doc’ Graham” (Burt Lancaster), no maravilhoso filme de Phil Alden Robinson “Field of Dream” (Campo dos Sonhos). Em um trecho, quando o velho doutor “Doc” expressa a Ray Kinsella, sua frustração, por não ter realizado seu único e supremo desejo (jogar um inning), para coroar sua passagem pela Terra, como jogador de beisebol, este lhe pergunta: “E como foi?”. Ele responde: “Foi como chegar perto de um sonho e depois vê-lo passar correndo, como um estranho na multidão. Na hora você não pensa muito. Não reconhecemos os melhores momentos da vida. Antigamente eu pensava: ‘Bem, haverá outros dias’. Eu não percebi que aquele era o único dia”. E prossegue “Bem, você sabe... Eu nunca bati nas ligas maiores... Gostaria de ter tido essa chance uma vez, para olhar para um arremessador de uma liga menor, ficar olhando para ele, dar uma piscada. Fazê-lo pensar que você sabe algo que ele não sabe. É o que eu queria... Uma chance de ver, num céu tão azul, que dói a vista só de olhar para ele. Sentir arrepio ao sentir a bola, correr pelas bases, marcar um duplo ou triplo e cair direto na primeira base, envolver meus braços na vitória. Esse é meu desejo, Ray Kinsella. Esse é meu desejo. Há mágica suficiente, à luz do luar, para realizar esse sonho?”. E, conclui, melancolicamente: “Que importância tem um inning, que faria você vir lá de Iowa, para falar comigo 50 anos depois... Você seria o homem que realizaria o meu sonho?... Muitos morreriam se chegassem tão perto do sonho e não o realizassem”. Meu pai me falava de sonhos, embora os únicos sonhos de criança de que me lembrava, eram aqueles que eu tinha, durante a noite, quando, pensando estar em outro lugar, estava, na verdade, dormindo em casa, esvaziando a bexiga e molhando parte do colchão. Meu pai me falava de anjos, embora eu não visse anjos nem soubesse o que eles faziam. Ele me falava de Jesus Cristo vivo e conosco, embora soubesse que “Jesus Cristo” (de gesso) estava deitado, dentro de um esquife, na sacristia da Igreja Católica da cidade, e só aparecia para os fiéis uma vez ao ano, durantes as festas religiosas da Semana Santa, em que se exaltava o “Senhor Morto”, posto na frente do altar-mor da igreja, para todos beijarem-lhe os pés, na sexta-feira “da paixão”. Ele me falava de Deus, embora eu não visse Deus nem soubesse o que Ele fazia. Sabia, no entanto, olhando as flores do campo, que alguém as tinha plantado e deixado lá. Mas, nunca soube de alguém que tivesse plantado tais flores ou cuidado delas, com extrema dedicação e zelo, como o Deus de que meu pai tanto falava. Sabia, no entanto, que elas estavam lá. Então, compreendendo, como menino, e pensando, como menino, entendia que alguém tinha plantado as flores e cuidado delas, dia e noite, para colorir a Natureza, entre árvores alegres e rochedos silenciosos, espalhados pelos campos. E, como não via ninguém, nem plantando, nem cuidando das flores, acreditava nas palavras do meu pai, de que Deus as tinha plantado e cuidado delas, todos os dias e todas as noites, em todas as estações, por anos e anos, que o tempo parou de contar. Por isso, estavam lá, bonitas, cheirosas, multicores, perfumando o ar e embelezando a vida de quem passasse pelos campos, naquele distante lugar. E, então, cresci, com o sussurro das vozes do tempo e lembranças do meu pai. E, hoje, quando sinto vontade de estar junto dele e falar com ele, no silêncio do meu coração, olho para sua foto, ao lado da minha mãe, na parede, do tempo em que estava no esplendor da vida: nos seus 35 anos de idade, sereno, olhando calmamente, como se ainda quisesse falar comigo e segurar minha mão pequenina. Olho seu rosto jovem, bonito, do tempo em que eu viajava com ele e ele segurava minha mão; do tempo em que me falava de anjos de meninos, de Jesus Cristo e de Deus, como se ouvisse a voz do coração pelo perfume das flores do campo que, sem nenhuma lógica, exceto à do passarinho, testemunhavam que Deus estivera ali, cuidando da terra, plantando sementes, para vê-las se transformar em belas e viçosas flores, espalhando alegrias, exalando perfume e colorindo a vida do homem que Ele criou e deixou na Terra. E, então, olhando demoradamente sua foto, parece que ainda ouço meu pai me falar de anjos de meninos, de Jesus Cristo, de Deus e de flores do campo, andando e segurando minha mão pequenina, num gesto paterno de puro amor, que jamais esquecerei. E, é dessa maneira, carinhosa e comovente, que sempre me lembro do meu pai, quando a saudade visita o templo da minha dor e as lembranças batem à porta do meu coração. Fernando de Almeida Silva Editor Associado [email protected]