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postado em: 9/9/2011
Na Solidão do Silêncio
Fernando de Almeida Silva
Em uma tarde calma de verão de 1955, quando tinha oito anos, sentei no travessão da cancela, perto da nossa casa, e fiquei olhando para a beleza do horizonte que se estendia à minha frente. Era para lá que eu corria quando queria estar só e “falar” com meus pensamentos e momentos de criança, que o tempo tornou inesquecíveis. Fiquei parado diante das amplidões dos campos de minha terra natal, ouvindo o cantar choroso dos pássaros e o soluçar cansado do rio.
Sentado, mergulhado na solidão do silêncio, evocava minhas indagações de menino, como o barco os cuidados do rio, sem se importar com o perigo das pedras lisas. É como se as águas profundas reclamassem da falta de luz e se esquecessem da pressa das corredeiras.
Sentia o pulsar da vida no cenário triste daquele final de tarde de verão, à espera dos espasmos da lua e das lágrimas do sereno, que chegariam devagar.
Fixava o olhar no horizonte, para entender os cuidados de Deus pela vida, como se o horizonte fosse um quadro que Ele pintava todos os dias na tela da minha imaginação, com cenários deslumbrantes da Natureza. E imaginava como seria a mesma cena, na tela de outros tempos, nos anos vindouros do futuro.
Era assim que eu ficava, quando subia na cancela, para contemplar a beleza do Céu, todo enfeitado de nuvens. Gostava de ver o Sol iluminar o capim seco dos campos e o colorido das flores, nos cantos solitários e sossegados do vale, onde meus pais já viviam muito antes do meu nascimento.
Era tempo de sonhar a vida e viver sonhando com ela, unindo seu canto à sinfonia calma da tarde, que somente a alma, em êxtase, pode ouvir, e o coração, em silêncio, escutar. Deus me permitia viver, sonhar e enxergar o mundo pela solidão do silêncio do mundo de uma criança da roça, sentada no travessão da cancela, admirando a quietude serena do entardecer, a beleza da primavera e o sussurro do verão.
Naquele canto solitário e silencioso do meu mundo de menino, sentia o que era a vida, em todo seu esplendor. E extasiava-me ante seu encanto sublime, como se aquele meu “mundo de menino”, fosse único e insubstituível, e que existiria para sempre, com suas belezas raras e momentos inesquecíveis. Era um mundo como se fosse a realidade única da vida, como se a tarde derramasse lágrimas de luz e, à noite, o rio quisesse encantar, com o cintilar distante das estrelas.
Eu via o mundo pelo olhar do mundo que o mundo de uma criança me deixava ver. Não que pudesse compreender a vida, em sua plenitude de beleza e paz, que sempre existiam naquele canto sossegado onde meus pais viviam, mas, pela distância de tempo entre ela e eu, entre o começo e o fim, pela idade de cada um: a vida, como sopro divino, eterno; e eu, como produto do mesmo “sopro” de vida, que acabaria um dia. E lá, sentado no travessão da cancela, ficava, sempre que a solidão e o silêncio me convidavam à meditação mais contemplativa da alma, “falando” com meus momentos, brincando com meus suspiros, sorrindo com a beleza que meus olhos viam, tentando “segurar” o Sol, para a tarde partir sem dor.
Via o mundo pelo quebrar da folha seca do capim, que o gado pisava todos os dias, e pelos acordes tristes da canção de seu tempo de vida, que somente a tristeza da solidão sabe tocar, a Natureza, escutar e, o coração, sentir. Era como se Deus me falasse ao coração e me convidasse à meditação mais sublime da alma, em êxtase de compaixão e dor, pelo capim seco que o gado pisava e pela agonia da tarde, que morriam devagar.
Era como se toda a Natureza sofresse pela demora das estações e velasse, naquele momento, pelos últimos instantes de vida do capim e pela partida da tarde. Era como se o lamento que eu ouvia da Natureza, ecoasse por todo o vale, nos prados, nas florestas, nas montanhas, nos caminhos, na superfície serena dos lagos e nas águas apressadas dos rios.
Era como se o canto da tarde fosse mais triste do que a tristeza do canto triste do dia. Era como se fosse a última canção da vida, bela, porém, sofredora, nos últimos instantes do adeus final. Uma canção tão triste que a mente tem dificuldade em assimilar, a compreensão definir e o coração aceitar. Uma canção que indica que a tarde vai, finalmente, morrer, à semelhança de todas as tardes que morreram antes dela, desde os tempos imemoriais da Criação.
Via a solidão do silêncio no cinza escuro das sombras, que vão se formando debaixo das árvores, pela presença silenciosa da luz. E, ver as sombras, inquietas pelo vento, que balança devagar as folhas, é ver o sorriso do bosque, na beleza de cada flor, abrindo suas pétalas aveludadas, nas primeiras horas da manhã.
Via o mundo, como se fosse o último horizonte da vida, o último suspiro, a última palavra, o último olhar, o último abraço e, então, a despedida final da tarde. É como a sinfonia do canto existencial das horas, querendo ser a sinfonia do canto inacabado da vida, que ouvimos num estertor de dor e sofrimento. É como se todos os dias Deus me ensinasse a cantá-lo e me convidasse a cantar com Ele, sentados no travessão da cancela, para acalmar a dor que corrói o coração de saudade e tira pedaços de amor da alma, de um menino da roça.
Sentado no travessão da cancela, via o tempo passar, como a recordação que surge e desaparece, deixando marcas dolorosas na alma, que o tempo urge esquecer. E, então, olhando as extensões dos campos à minha frente, imaginava ver o rosto transfigurado de Deus, mesmo sem nunca tê-Lo visto, no vôo gracioso dos pássaros, na sombra silente no chão, na folha seca do capim, nos vales, nas montanhas, nos caminhos, valados e riachos e na queda livre das cachoeiras.
Então, percebo que a solidão é como a pressa da alma inquieta, buscando refúgio na compreensão, para acalmar a espera do silêncio. E nos mostra a vida como ela é, pela meditação, pelo cantar dos pássaros e o olhar contemplativo de Deus postado nas colinas, nos vales, nos rios, nas montanhas, nas florestas, todos os dias de sol, em todas as estações e tardes de verão, que não podemos contar. E que o silêncio, esse transe mediúnico da alma que se apodera do coração e desdenha do sibilo sacramental do vento, sangra, pela surpresa das recordações, ao suspirar das últimas horas de luz.
E como poderia ser diferente, se a solidão e o silêncio andam de mãos dadas, segurando nas mãos de Deus para caminhar sem cair? Não posso acalentar a solidão da espera, ou profanar a piedade do silêncio, que meus olhos contemplam e o coração sente, para não deter-me no âmago das minhas recordações de menino, de deslumbre e encantos da simplicidade da vida na roça, que não consigo esquecer. Então, sentado no travessão da cancela, buscava Deus em todos os cantos da Natureza, nos campos silenciosos de minha terra natal, que meus olhos de saudade ainda buscam, pelos horizontes da vida, para encontrá-Lo e abraçá-Lo.
E assim, toda vez que a solidão invade meu coração e a alma procura a piedade do silêncio, nos rascunhos do tempo que o tempo escreveu e guardou, corro para a cancela das lembranças do passado, para refletir sobre os tempos da vida que o tempo da minha vida não apagou. E fico lá, sentado, diante do templo das recordações de menino, olhando, em silêncio, a luz suave do entardecer, o rio, seguindo devagar seu curso, o horizonte quieto da minha vida, buscando, na solidão do silêncio, imagens de outros tempos e de outros momentos, como a aflição diante do espelho, à procura de Deus para conversar.