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postado em: 23/9/2011
Banho de Bica
Fernando de Almeida Silva
Eu ficava ansioso para chover e tomar banho de bica, na casa do José Evangelista de Souza o “Verdadeiro”, nosso vizinho da casa do outro lado da rua. O apelido devia-se à sua delicada maneira de falar e caminhar, seus trejeitos, sua fala, cujo comportamento, naquele tempo, era associado ao quadrúpede que corria rápido e dava saltos de longas distâncias, encontrado somente nos campos abertos, longe da cidade. Ele morava com os pais, o irmão e as irmãs e nossas famílias eram amigas.
Todos os dias eu olhava para o céu à procura de nuvens escuras e imaginava que ia chover. Parecia fixação por elas. Mas, não. Era, apenas, a procura de um sinal de chuva, para alimentar minha vontade de tomar banho de bica, na casa do “Verdadeiro”.
O vento formava redemoinhos que atravessavam a cidade e fazia muito estrago, como uma peste devastadora ou a fúria de um tangue de guerra no campo de batalha. Se houvesse roupas nos varais, elas eram levadas pelo vento para o espaço, todo enfeitado de poeira, roupas e objetos, até deixá-los cair, espalhados no pasto da fazenda do Dr. José Vaz Sampaio Espinheira, o “Dr. Zeca”, cuja divisa passava perto da nossa casa.
Naquele canto do mundo, sem televisão, e-mail, microondas, TV digital, fax e celular, se comparado ao mundo de hoje, a vida era simples e de poucas diversões: apenas cinema e circo e, este, quando passava pela cidade... E tomar banho no rio Catolé, jogar futebol na “rodajinha”, soltar pião, jogar bola de gude e riscar “triângulo” na terra molhada. Esses eram o nosso passatempo diário, depois dos estudos.
No inverno chovia muito e fazia lama nas ruas, algumas, calçadas com paralelepípedos a partir de 1952. A enxurrada escorria depressa, até alcançar o rio Catolé. Mas, antes, se misturava ao esgoto “in natura”, que também corria livremente para o rio. E, depois, seguiam juntos para o mar.
Como menino, gostava de tomar banho de bica. Era como se estivesse debaixo de uma cachoeira, daquelas parecidas com um “véu de noiva”. Depois, corria pelas ruas e fazia barragens de terra, como se as mãos de um menino pudessem dominar a água da chuva e a força da enxurrada e “construir” barragens, como os construtores de hidrelétricas, que tínhamos como referência os caminhões da Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco - CHESF, que passavam e pernoitavam na cidade.
As gotas de chuva caíam como flocos de cristais de sonhos, beijando o rosto triste do entardecer, quando a noite se aproxima. O vento soprava, a chuva caía e molhava meu rosto, encharcado de esperança, em minha saudosa cidade, Itapetinga.
Vivia no paraíso de todas as imaginações de menino que a vida torna possível, com a magia de ver a água escorrendo pela bica de zinco, na casa do “Verdadeiro”. E sabia que um dia aquele mundo de brincadeiras teria fim, que eu cresceria e partiria dali, para nunca mais voltar. Ou, que, talvez, voltaria um dia sem data e hora marcadas, no entremeio das estações, para ouvir o sussurro das recordações do menino de outrora, no crepúsculo de todas as saudades guardadas no coração. Sim, talvez, um dia, no futuro, voltaria para viver tudo outra vez, como no primeiro dia que tomei banho de bica.
Se houvesse uma ponte de sublimidade entre a saudade e a dor, aquela bica de zinco seria uma das muitas recordações, que amei e eternizei no coração, desde o primeiro momento que a vi.
Olhava o último pingo d’água cair da bica, do telhado, da copa das árvores, do céu escuro, sem nada poder fazer. Admirava a calmaria insinuante da vida e o lampejo do Sol, atravessando devagar as nuvens e iluminando novamente o dia. Depois, a terra molhada secava, a enxurrada sumia, escorrendo pelos cantos das ruas, como a implorar distância dos esgotos negros das casas, que corriam “in natura” para o rio, a caminho do mar.
Todos os dias eu esperava outra chuva cair, outros momentos, outros instantes inesquecíveis, para brincar debaixo da bica, na casa do “Verdadeiro”. Tudo se repetia como no ciclo das estações, como num transe imediato que a vida imprime na tela das horas que formam os dias e as noites, sobre as planícies serenas dos campos, o clarão prateado do luar e o cintilar romântico das estrelas.
Postava-me diante da casa do “Verdadeiro”, como a fragilidade diante do espelho, para ver seu rosto transfigurado, pela inclemência da luz. Então, brincava... Brincava... E brincava... E os que não brincavam, alimentavam a impaciência da curiosidade, olhando através da janela, admirados pela intensidade da chuva, o troar assustador dos trovões e o rastro sinistro dos relâmpagos, como se o céu fosse um campo de batalha, comandada por um general, sem medo de perder a guerra. E, então, diziam, com olhos dormidos de admiração e espanto: “O ‘cacau’ tá caindo...”.
Raios e trovões. Lama e terra molhada. Vento e chuva caindo. Ladeiras e enxurradas. O ritual era sempre o mesmo. E quando tudo começava, eu corria para a bica, como a criança ao encontro dos pais, ao descobrir o idílico primeiro sorriso deles.
Admirava a beleza do arco-íris e a transcendência de suas cores luminosas, que mortal algum jamais conseguiu tocar. E ficava encantado com a imaterialidade das cores curvadas, como se a Natureza comemorasse o “Casamento da Raposa”, que a crendice popular de então nos fazia acreditar. Mas, as cores que víamos, era a ilusão por trás do imaginário de um casamento feliz, na chuva, mas nunca sabíamos quem era o noivo da noiva, o príncipe da raposa, tendo o Sol como testemunha.
O arco-íris é o resultado da incidência da reflexão da luz do Sol, sobre gotas de água no espaço, pela variação da temperatura. Quando o Sol ilumina as gotas de chuva, em seu lado oposto, produz o fenômeno, em que as cores brilhantes do espectro solar são vistas, com a cor violeta no bordo interno e a vermelha no externo, formando um arco de 42 graus e uma largura de dois, cujo tamanho depende do diâmetro das gotas de chuva. Quanto maior as gotas, tanto mais luminosos e largos são os arcos. Caso contrário, o arco se apresenta “esbranquiçado” e sem graça.
O fenômeno pode produzir um segundo arco de 50 graus de abertura por três de largura, envolvendo o primeiro, com cores menos brilhantes e dispostas em sentido inverso. É o fenômeno que a ciência explica como sendo a reflexão dos raios solares nas gotas de chuva, pela refração e reflexão. Na formação do primeiro arco-íris há, apenas, uma reflexão e, no segundo, duas reflexões, pela explicação do meteorologista sueco Jacob Aall Bonnevie Bjerknes (Estocolmo, 2 de novembro de 1897 – Los Angeles, 7 de julho de 1975).
Sendo a chuva um meteoro aquoso devido à condensação dos vapores d’água em suspensão na atmosfera, o tamanho de suas gotas depende do grau de saturação das chamadas camadas inferiores àquele em que se deu a condensação dos vapores.
E assim, de chuva em chuva, de aguaceiro em aguaceiro, de temporal em temporal, lá estava eu, alegre e sorridente, confiante e feliz, tomando banho de água fria da chuva, que escorria da bica velha de zinco, da casa do “Verdadeiro”.
“Verdadeiro” ainda vive. Encontrei-o em 2004, morando na mesma cidade, mas em outro bairro e outra casa. Estava casado e ainda gaguejava. A antiga casa com a velha bica de zinco não existia mais. Em seu lugar havia outra, mais moderna, com outras pessoas morando nela e sem a bica que furava a platibanda da casa, que encobria o telhado, e deixava a água cair perto da porta de entrada. Conversamos por muito tempo, a maior parte revivendo momentos passados da vida, de quando éramos meninos e corríamos pelas ruas de terra batida da cidade, sob a chuva, ou tomávamos banho debaixo da bica, em frente à sua casa. Fiz uma fotografia dele (que ilustra este texto), e prometi voltar para continuar nossa conversa. E voltei, nos primeiros dias de abril de 2011. Sentamos e retomamos a conversa que tínhamos deixado para trás, há 45 anos, do tempo em que brincávamos sob a chuva, e da última vez que estive lá, há seis anos.
E quando me despedi dele e parti, ficou aquele gosto amargo da separação de um amigo, como um travo acre na alma, regurgitando momentos da vida de menino que não voltam jamais. Mas, com a certeza de que, passados os anos que a própria vida somou, ter olhado de frente para a felicidade, quando tomava banho de bica na casa do “Verdadeiro” ou corria pelas ruas de terra batida da cidade, eternizando sonhos no coração, que o tempo da vida não apagou, é algo que não se pode esquecer ou deixar de amar.
José Evangelista de Souza o “Verdadeiro”,
numa foto tirada em 2004.