Digite uma palavra chave ou escolha um item em BUSCAR EM:
postado em: 24/2/2012
O Olhar Compassivo para o Chão
Fernando de Almeida Silva
Editor Associado
[email protected]
Ao saí do restaurante onde almoço todos os dias durante a semana, segui pela calçada, de volta ao trabalho, cerca de 150m de distância.
Ao pagar a conta, lembrei-me da jovem de 17 anos que fica na recepção do sindicato e atende ao telefone. Comprei para ela um doce já conhecido. Saciado da fome, voltei pelo mesmo caminho de sempre: pela calçada e, logo depois, atravessando a avenida, em frente às duas papelarias, uma de cada lado, continuando pela outra calçada, até chegar ao escritório. No meio do caminho, pela calçada do lado do restaurante e, antes de atravessar a movimentada avenida, passei em frente a uma casa de dois andares, uma revenda de carros usados, um supermercado e uma papelaria.
A primeira porta do supermercado é a de entrada. As outras quatro tem vidros em todo vão, como uma vitrine chamativa, que permite às pessoas verem, da rua, as mercadorias expostas nas prateleiras enfileiradas lá dentro. Mesmo assim, àquela hora, notei que, mais do que os outros dias, pessoas entravam e depois saíam, carregando sacolas de compras pelo braço.
Passei em frente à primeira porta, continuei andando até perceber, de repente, um senhor sentado no chão, encostado à vitrine da terceira porta, acima do nível da calçada. Era um morador de rua, desses que, aparentemente, não incomodam ninguém.
Ao passar por ele, olhei-o por acaso, e senti o coração tremer, mais pelo olhar que ele me dirigiu, do que pela total condição maltrapilha de mendigo de rua, sem lugar certo para morar e comer ou, até mesmo, passar a noite. Olhei porque, simplesmente, ele estava no meu caminho. E seria difícil ignorá-lo ou disfarçar que não o via ali, como faziam as outras pessoas que passavam por ele, quase pisando em suas pernas, um pouco estendidas na calçada.
Diminui o passo e parei perto dele e nossos olhares se cruzaram. Ele, num misto de compaixão e tristeza, embaladas no invólucro ensangüentado do sofrimento humano, sem trégua, bailando com o desamparo e a crueldade da vida, impiedosa para com ele. Sentado estava e sentado continuou, mas olhando para mim.
Eu não tinha a intenção de parar no trajeto entre o restaurante e o escritório. Mas, sem saber por que, parei. Eu olhava para ele e, ele, para mim. Não dissemos uma única palavra ou esboçamos um único sorriso, mesmo disfarçado ou indiferente. Mas, ele chamou-me a atenção à primeira vista. Seu olhar era vazio e suas súplicas silenciosas, que fazia chorar o coração, de piedade e compaixão. Era como se, naquele momento, eu pudesse escutar a voz de seu coração e as súplicas de sua alma, sedentas de amor e compaixão, como se a fome o destruísse pouco a pouco e o levasse mais depressa para mais perto da morte.
Vendo-me parado diante dele, ele nada disse; nada pediu. Apenas olhou-me sem nenhuma surpresa ou emoção nos olhos. Apenas olhou-me com um olhar silencioso e suplicante, que fazia tremer de emoção qualquer pessoa sensível às desgraças alheias e sentir compaixão dele. Apenas olhou-me e, como se há muito estivesse acostumado com os olhares indiferentes de quem passava por ele todos os dias, e o ignorava, apenas olhou-me, sem surpresa e admiração.
Aquela era a primeira vez que eu o via sentado ali, diante da porta/vitrine do supermercado, e com seu olhar de compaixão. Tinha-o visto em outras ruas do bairro, mas nunca ali e tão próximo a mim. Essa observação íntima, que brotou de dentro do meu ser, despertou-me para a curiosidade de vê-lo ali, em pleno meio dia.
Ao notar minha aproximação, apenas olhou-me. Seu olhar parecia distante e vazio, perdido na distância dos afagos da vida, sem graça, como a anunciar uma visão inacabada da própria vida, cujo fim se aproximava. A seguir, abaixou a cabeça e continuou imóvel, creio que, sem nenhuma esperança de receber algo de quem passasse por ali, vendo-o sentado no chão, na calçada. Ainda não se passara mais que um minuto desde o momento que notei sua presença, sentado diante da vitrine.
Olhava-me, calado, como a suplicar socorro com os olhos, amortecidos pela dor do abandono. Não se mexeu do lugar e nem estendeu a mão para pedir-me qualquer coisa: comida ou dinheiro, por exemplo. Olhou-me em silêncio e em silêncio permaneceu, olhando-me. A essa altura, muita gente entrava faminta do restaurante, saía de lá saciada da fome e seguia para o trabalho, passando exatamente diante do supermercado, mas... Ignorando-o. As pessoas passavam por ele e continuavam seu caminho. Mas, como se fora a cor do vento, que ninguém sabe de onde vem e nem para onde vai, e como é ou, mesmo, se existe, não o viam. Ou fingiam que não o viam.
O doce de leite para a jovem que atende na recepção, jamais chegou à destinatária. Ficou na metade do caminho, para saciar ou disfarçar a fome do morador de rua (um doce apenas não sacia a fome de ninguém), pois o dei ao homem que tinha acabado de encontrar, sentado na porta/vitrine do supermercado.
Diante daquele homem, o apelo da compaixão falou mais alto do que o murmúrio angustiante da solidão que o acompanhava. Era um murmúrio que somente o coração piedoso sabe ouvir, a gente sentir e a alma escutar. E, sem nada dizer, entendi o braço e dei para ele o doce de leite que seria para a jovem da recepção, num misto de compaixão e prazer. Ele olhou-me, parecendo não acreditar no que via. Mas, estendeu o braço e pegou o doce de leite, mesmo não sendo caro, mas com a certeza de que não possuía dinheiro para comprá-lo.
Estendi o braço em direção a ele. Ele, por sua vez, fez o mesmo, em direção a mim. Ele nada disse, nem com a boca e nem com os olhos, palavras ou gestos que eu pudesse entender como agradecimento. E nem recusou o simples, porém, providencial e indispensável presente inesperado do meio dia: o providencial doce de leite. Não disse nem “obrigado” nem nada. Apenas recebeu o doce. Mas, também, não precisava dizer nada. Eu não esperava e nem desejava que ele agradecesse, apenas que recebesse o doce e tentasse driblar a fome que o atormentava dia e noite. Foi o que pensei naquele momento, tendo-o diante de mim.
Sem nenhum gesto de surpresa, o suplicante silencioso olhou-me bem nos olhos, pegou o doce, e ele continuou envolto em seus pensamentos, que eu não sabia dizer quais eram, mas compreendi tudo com o toque expansivo da voz silenciosa do coração. E, nada disse. Apenas lancei um olhar de compaixão para ele e continuei meu caminho. Andei uns seis metros, olhei para traz, e vi-o, tentando abrir a embalagem de papel celofane, para comer o doce que recebera. Atravessei a avenida e olhei pra trás outra vez. Lá estava ele, sentado no mesmo lugar, do mesmo jeito, com sua maneira calma, resignada da vida, tentando abrir a embalagem de celofane, com suas mãos fracas, trêmulas e envelhecidas pelo tempo.
O silêncio do desconhecido, que eu acabara de conhecer, evocava um olhar de compaixão que não se pode esquecer jamais. A maneira como recebeu o doce e olhou-me, sem nada dizer, pediam uma explicação para a condição ingrata de sua vida. Era como se fosse a revelação do olhar suplicante do sofredor, que não encontra conforto para sua alma aflita nas ruas, ou sentado na calçada, em frente a um supermercado. Era como se fosse a voz do coração suplicante, chamando a atenção para o faminto. Era como se eu ouvisse mil palavras de satisfação e mil maneiras de expressar contentamento e gratidão, apenas, pelo falar suave e comovente da voz do coração, daquele sofrido e abandonado morador de rua.
À medida que eu me distanciava, olhava para trás, para vê-lo comer com sofreguidão o doce que acabara de receber. Andei cinco metros, dez, 15... Nada. Atravessei a avenida, olhei novamente para trás, mas notei que ele não mastigava e, portanto, não comia o doce. Apenas olhava, resignado, para o doce que tinha nas mãos, diante de seus olhos aflitos. Olhei pela última vez e, como das outras vezes, não o vi comendo o doce. É possível que o tivesse guardado para depois, para outra hora, quando a fome viesse depressa e devastadora.
Finalmente, atravessei a avenida e caminhei pela outra calçada até chegar ao trabalho... Sem o doce da recepcionista, mas com o coração confortado, por ter tido piedade do homem que encontrei no meio do caminho, sentado na calçada do supermercado, sem saber o que fazer da vida, e sem rumo certo para onde seguir, ou fugir da desgraça do sofrimento. Eu estava feliz, pelo simples prazer de ter tido piedade do homem que me olhou com os olhos da compaixão e as súplicas das lágrimas de dor, de sofrimento, contidos no coração, que em silêncio suportava as angústias diárias vida.
Quando a recepcionista chegou, contei-lhe o que se passara. Disse-lhe que ela tinha ficado sem o doce, pois o tinha dado a um morador de rua.
E ela, olhando-me, tal qual o homem, na calçada, apenas sorriu, com um sorriso diferente, de alegria e satisfação. Era o sorriso de quem sentiu que participou, indiretamente, da alegria de ver os outros sorrirem, através da bondade e piedade do coração, do oferecimento de um simples e barato doce de leite, para saciar a fome de um sofrido morador de rua.
E o dia continuou à espera da noite, para adormecer serenamente, enquanto as estrelas sorriam lá do alto, mas com um silencioso, inesquecível e inexplicável olhar compassivo para o chão. Afinal de contas, o Natal estava próximo.