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postado em: 13/9/2012
Uma Parábola Sobre a Amizade
Fernando de Almeida Silva
pprfernando@yahoo.com.br
Editor Associado
www.iasdemfoco.net
Ao amanhecer do primeiro dia da segunda semana do terceiro mês, o mestre Al-Mahdi acordou e foi andar pelo jardim. O sol da manhã formava sombra nas árvores e na pétala das flores, molhadas de orvalho, ante a preguiça do calor da luz.
À medida que caminhava, Al-Mahdi seguia o mesmo ritual de sempre: cabeça baixa e passos lentos, ao ritmo da brisa fresca da manhã, no intervalo repetido das horas. Assim, ele ordenava seus pensamentos e disciplinava sua memória, à luz da realidade, com a subjetividade da meditação.
Al-Mahdi era amigo e guia espiritual de Ibn-Zara, o aprendiz que chegara ao mosteiro, ainda jovem, para aprender os segredos do coração e as subtilezas da alma e, com ela, da amizade entre os homens, mesmo levando-se em conta a diferença de idade entre mestres e aprendizes, entre Ibn-Zara e seu mestre, que caminhava com ele.
Ibn-Zara optara por viver no silêncio dos velhos corredores mudos e na segurança das grossas paredes centenárias do mosteiro, para fugir da tentação da cidade grande. Não se sentia prisioneiro e nem solitário ali, mesmo vivendo longe da casa dos seus pais, do burburinho enfeitiçado das ruas e do mundo festivo lá fora.
Uma das primeiras lições que Ibn-Zara aprendeu ao chegar ao mosteiro foi que o melhor da vida estava no coração da amizade. O que vinha depois, dizia o mestre, era conseqüência da idade, do tempo e da convivência entre pessoas, aliados à sabedoria dos anos. O “tempo e a idade, aliados aos anos da vida”, dizia o mestre, tornam possível o clamor de sossego da alma e a busca de paz do coração. E a Natureza, testemunha o tempo e a idade de cada um.
Ibn-Zara sentia-se feliz e seguro vivendo assim. Os anos de reclusão, no mosteiro, lhe ensinaram o valor do perdão, da paciência, da compaixão e da tolerância entre aprendizes e mestres. E, acima de tudo, da amizade entre irmãos.
Al-Mahdi sempre caminhava olhando para o chão, em silêncio contemplativo. Caminhava de cabeça baixa, como se, assim, pudesse compreender melhor a alma da Natureza e a natureza da alma dos homens. Quando falava, sua voz soava como um eco, reverberando no fundo do coração, para o fundo do coração de quem o ouvia com atenção. A voz vinha das profundezas de sua alma generosa, para a alma impregnada de atenção dos ouvintes, absortos de admiração.
Ibn-Zara ouvia com atenção as explicações filosóficas do mestre, como o peregrino das horas fortuitas, faminto e sedento de explicação, implorando esmolas para não morrer. E que imagina ver, no rosto de cada viajante que lhe oferece uma esmola ou um pedaço de pão, o semblante de Deus multiplicado.
O aprendiz não se descuidava dos ensinos do mestre, mesmo diante do altar da capela do mosteiro, onde podia contemplar a velha pintura do menino Jesus, sentado no colo de sua mãe.
Um dia, enquanto caminhavam pelo jardim, Ibn-Zara percebeu mudanças na maneira como Al-Mahdi andava e na modulação de sua voz, expondo a inquietude de sua alma, estampada em seu rosto, de ternura ensanguentada. De repente, o mestre parou, levantou a cabeça, abriu os olhos, olhou para o aprendiz e perguntou-lhe:
- Ibn-Zara, o que você sabe sobre a amizade?
Tomado pela surpresa, o aprendiz voltou-se para o mestre, e a luz da alegria iluminou seu rosto.
Então, Ibn-Zara lhe respondeu, com estas palavras:
- Mestre, o que posso dizer sobre a amizade, senão aquilo que aprendi de vós, por meio de vossa compaixão e exemplo, caminhando convosco todos os dias? Por acaso, pode o gafanhoto dizer à flor que são amigos? Pode o amanhã suspirar pela noite que deixou para trás, ou pelas horas finais do por do Sol, para alegria de outra noite e prazer da escuridão? O que quereis que eu vos diga se, no espelho da vossa alma, eu me vejo de alma contrita, como o silêncio do bosque, tentando repetir a meiguice das borboletas? A luz não dá razão à escuridão, nem a escuridão recebe com prazer a luz.
O mestre, admirado com a resposta do aprendiz, disse-lhe com ternura:
- Eu sei o que inquieta sua alma e seu coração, Ibn-Zara. A flor não viveria sem a amizade do solo e a proteção do arbusto. A colina protege o vale. O arbusto protege a flor. E o vale protege os dois. E Deus cuida de todos. O rio, correndo para o mar, permite a vida dos peixes, para alegria das águas e do pescador. O Sol, que chega e ilumina a flor ilumina, também, o arbusto e a relva. E as flores sempre estarão sorrindo. Se a flor não for amiga da folha, como subsistirá? Se ignorar o beija-flor, ou o vento, como o pólen se espalhará pelos campos? Se o arbusto impedir o Sol de chegar à flor, como nascerão outras flores? Como surgirão outros arbustos, outras folhas e outros frutos, para embelezar os campos, nas estações que vão e vêm? O que faz a flor e o arbusto perpetuar sua espécie, senão a amizade entre eles, o rio, o vento, as aves, a Natureza e a luz?
Ibn-Zara estava sem palavras, diante da sabedoria do mestre e do seu conhecimento sobre a Natureza e o coração do homem.
O mestre continuou:
- A amizade, é como a beleza da flor que, mesmo distante, sentimos seu perfume, para o prazer santificado da vida. Mas, a beleza da flor não poderia existir em detrimento do seu perfume. É como o ar, que espalha o perfume da flor, cuja fragrância, que sentimos (e gostamos de sentir), faz-nos felizes e cheios de alegria para a vida. E, assim, respiramos e sentimos seu perfume. É como o Sol que, abraçado à alvorada, sorri às horas de um novo dia, até a noite chegar. É como o dia que, despedindo-se da noite, deleita-se com a quietude da alvorada, que a Natureza deixa voltar, sorrindo, porque voltou. E não haveria equilíbrio na Natureza (e nem amigos), se não houvesse amizade entre o dia e a noite, a manhã e a tarde, o vento e a calmaria, a chuva e o Sol.
Ibn-Zara olhava com mais admiração para o mestre.
Então, o mestre, vendo a admiração da juventude nos olhos de Ibn-Zara abrir-se à voz da alegria e à ternura de sua alma, alegrou-se em seu coração. E ele sorriu.
E continuou:
- Ibn-Zara, para o amante, amizade é a fúria do amor, desperto em disposições de vontade e querer, no êxtase da alma saciada, que a cólera do Ego não consegue controlar. Para a criança, amizade é ser amparado por pai e a mãe, segurando sua mão pequenina, para não tropeçar e cair. Mas, para os verdadeiros amigos, ela é o elo que se une a outro elo e torna forte a corrente. E, mesmo diante de forças adversas, tais elos não se partem. Antes, porém, tornam-se mais fortes e resistentes, porque estão sempre unidos na corrente. Assim é a amizade, Ibn-Zara.
E concluiu, com estas palavras de sabedoria:
- Nunca esqueça a amizade, Ibn-Zara. Nunca abandone seus amigos, mesmo que eles venham abandoná-lo ou esquecê-lo um dia. Por que, se abandoná-los ou esquecê-los, sentirá sua falta na hora da partida. O verdadeiro soldado não deixa para trás um companheiro de arma ferido. Antes, vai até ele, envolve-o com seus braços, coloca-o sobre seus ombros e, em meio ao tiroteio no campo de batalha da guerra sem explicação, leva-o para o abrigo seguro, para protegê-lo da artilharia inimiga e curar seus ferimentos. É uma norma de conduta militar, que se aprende no tempo de paz, mas que se pratica no front da guerra: Um soldado não deixa um ferido para trás.
Ibn-Zara sorriu em seu coração, agora mais reconfortado.
E quando a noite chegou, dormiu e sonhou que tinha morrido e ido para o Céu. Ao chegar lá, achando-se tomado pela solidão, de repente deparou-se com um amigo que, na sua juventude, caminhara com ele pelo jardim do mosteiro e lhe ensinara o valor da compaixão, da piedade, da mansidão e, acima de tudo, da amizade. Era Al-Mahdi, seu antigo mestre e benfeitor, que chegara ao Céu antes dele. O sorriso de Ibn-Zara abriu-se à voz da saudade, da alegria e da gratidão, por encontrar, no Céu, o antigo amigo que vivia na Terra. Agradecido, disse em seu coração: “Agora ficarei eternamente ao lado do mestre, andando e sorrindo com ele, nos jardins da casa de Deus”.
A amizade, que Deus tinha plantado no coração de Al-Mahdi e Ibn-Zara, nos muitos anos de convívio no mosteiro, na Terra, havia perdurado e chegado ao Céu.
E, então, subitamente, Ibn-Zara acordou assustado do seu sonho, com os olhos ainda ofuscados pela escuridão da noite. E, percebeu, para sua alegria, que estava vivo e na Terra. E pensou:
- É bom ter amigos. É bom nunca esquecê-los, por que no dia da partida, com a chegada da morte, ou pelo drama da distância, um deles estará conosco, nos confortando na aflição, ou velando nosso corpo, em viagem definitiva para Deus. E uma lágrima de sofrimento descerá pelo rosto da compaixão de sua alma, entristecida pela separação... Ou, estará à nossa espera no Céu, para receber-nos e abraçar-nos com alegria.