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postado em: 31/5/2015
As religiões e a construção de um novo paradigma de conhecimento
Religions and the construction of a new paradigm of knowledge
Renato Somberg Pfeffer
Resumo
O vigoroso progresso das últimas décadas fez estremecer as bases do paradigma científico moderno. O presente artigo defende que a ciência moderna não é a única ou a melhor forma de explicação possível da realidade. A metafísica, a religião, a arte ou a poesia podem ser tão válidas quanto a ciência. A religião, especificamente, pode ser uma protagonista na construção de um novo paradigma de conhecimento em uma sociedade secularizada.
Palavras chave: Progresso; ciência; conhecimento; religião.
Abstract
The strong progress of recent decades has shaken the foundations of the modern scientific paradigm. The article argues that modern science is not the only or best explanation of reality. Metaphysics, religion, art or poetry can be as valid as science. Religion, specifically, can be a protagonist in the construction of a new paradigm of knowledge in a secularized society.
Keywords: Progress; science; knowledge; religion; secularization.
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Somos hoje protagonistas e produtos de uma nova ordem produzida pela ciência que tem colocado o próprio conhecimento científico em xeque. O vigoroso progresso das últimas décadas fez estremecer as bases do paradigma científico nascido na modernidade. O futuro é incerto e as previsões paradoxais: por um lado, o acúmulo de conhecimentos parece nos levar a uma sociedade de comunicação e interatividade que libertará a humanidade das carências e inseguranças; por outro lado, convivemos com a ameaça de uma catástrofe ecológica ou nucelar. Frente à instabilidade do sistema presente, sempre sujeito a rupturas, Souza Santos (1988) levanta a hipótese que a crise do paradigma científico moderno tem provocado o declínio da confiança epistemológica; o que provocou a instalação entre nós de uma sensação de “perda irreparável tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder” (Souza Santos, 1988, p. 47).
A hipótese fundamental que baliza as especulações de Souza Santos sobre uma nova ordem científica emergente é a falta de sentido na distinção entre ciências naturais e ciências sociais e, ao mesmo tempo, a necessidade de se operar uma síntese entre elas. O mundo caminha para um processo de comunicação intensa entre o natural e o social e, por isso, a lógica existencial da ciência pós-moderna deve promover a situação comunicativa tal como Habermas (1987) a concebe.
Dessa primeira hipótese, o sociólogo português deriva uma segunda: a ciência moderna não tolerava a interferência dos valores humanos ou religiosos, pois, o homem era visto apenas como o sujeito do conhecimento. O novo paradigma científico afirma que o objeto é a continuação do sujeito. Por isso todo o conhecimento científico é autoconhecimento. Na prática, “isso significa que os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação” (Souza Santos, 1988, p. 67). A ciência moderna não é a única ou a melhor forma de explicação possível da realidade. A metafísica, a religião, a arte ou a poesia podem ser tão válidas quanto a ciência.
Nessa perspectiva, estamos assistindo uma flexibilização da ciência “monoteísta” que estaria dando lugar a um “politeísmo” metodológico. As premissas das ciências da natureza e do espírito invadem-se mutuamente. Como havia intuído Weber (2002), a oposição entre explicação e compreensão vai sendo substituída por um modelo de integração. Este modelo aceita um pluralismo metodológico de um lado e, de outro, leva em conta os aspectos subjetivos da pesquisa.
O presente artigo defende o possível protagonismo das religiões para construção de um novo paradigma de conhecimento em uma sociedade secularizada. O potencial das religiões na atual sociedade foi bem percebido na mudança de posição de Habermas sobre esse assunto. Inicialmente, em sua obra Teoria da razão comunicativa (1987), ele defendia que a integração social, historicamente levada a cabo pela religião, era na contemporaneidade competência da razão comunicativa. Posteriormente (Habermas, 1990), ele sugere a inconveniência de renunciar o potencial das tradições religiosas para compreender os conceitos fundamentais da história do espírito. Também defende que na religião encontramos conteúdos semânticos irrenunciáveis para a correta modelação das sociedades modernas. Segundo Habermas, a clássica teoria da secularização necessitava ser superada, pois, a sociedade e o conhecimento continuavam a manter um diálogo com a religião.
Iniciada com o Renascimento Cultural e a Reforma Protestante no século XVI, a modernidade é marcada por um conjunto de valores e normas que colocam o homem como protagonista de sua própria história, sempre em estado de autossuperação e autocompreensão (Cf. García Gómes-Heras, 2008, p.104). A sociedade moderno-burguesa inaugurou o domínio científico da natureza e supôs a desvinculação entre Deus e o homem. Nas palavras de Pérez-Agote “quando a modernidade - isso é, a ciência e a racionalidade instrumental – entra por uma porta, a religião sai pela janela” (Pérez-Agote apud Riesgo, 2010, p. 46).
Esse processo culminou no protagonismo da subjetividade, no processo de secularização, no ideal democrático e em uma concepção de história baseada na ideia de progresso sujeito ao desenvolvimento da ciência moderna e da autonomia da razão moral e da razão política. Em suma, a racionalidade moderna se identificou com uma mentalidade ligada a métodos científicos, aos valores seculares, a legitimação do poder mediante códigos escritos e a um Estado gestado pelo modelo burocrático.
Ao se fundar na matemática, o rigor científico moderno buscou sempre quantificar e objetivar e, ao fazer isso, desqualificava e degradava os fenômenos que caracteriza. A ciência moderna fecha as portas a muitos outros saberes, é um saber desencantado que transforma a natureza em um autômato, “um interlocutor terrivelmente estúpido” (Prigogine, 1980, p. 13). O que o conhecimento ganha em rigor e êxitos tecnológicos, perde em riqueza e capacidade de compreensão do mundo.
O tom otimista do humanismo moderno muda radicalmente no século XX após o desastre das duas guerras mundiais. O “humanismo doente” (Caffarena; Mardones, 1999, p. 61) da filosofia existencialista vai questionar de forma veemente a razão positivista da modernidade e o excessos do antropocentrismo.
O século XX assiste, pois, a crise do sujeito moderno ao questionar sua consistência. Chega-se a falar de “morte do homem” (Caffarena, apud Riesgo, 2010, p. 48).
A essa crítica à modernidade, pode-se acrescentar a persistência das relações de desigualdade nos campos do poder, conhecimento e da economia, o individualismo hedonístico, a falta de solidariedade, os desequilíbrios ecológicos, a violência. O projeto ilustrado em seu desenvolvimento histórico, portanto, se revelou irracional. Uma das características daquilo que hoje chamamos de pósmodernidade, na verdade, é uma crítica à razão moderna e seus desvios éticos e políticos.
Habermas relaciona o pensamento moderno com a fé na ciência, com o progresso infinito do conhecimento e com as melhoras sociais e morais (Cf. Habermas, In: Picó, 1988, p. 88). O moderno significava aspirar ao rigor matemático e um tipo de conhecimento se reduzia à quantificação. Tais características se puseram a serviço do progresso como produção e se associaram, historicamente, com a revolução industrial e com a economia de mercado. Por outro lado, “a crematística e o hedonismo do homo habilis propiciaram umas atitudes refratárias com relação à sensibilidade pela dignidade humana e seus direitos inalienáveis” (Riesgo, 2010, p. 49).
A razão científico-técnica favoreceu a hegemonia da razão econômica e esta, por sua vez, se beneficiou da fragmentação da razão moderna. A conseqüência desse processo para o sujeito é sua desintegração frente à pluralidade de possibilidades. A modernidade optou por uma ciência, uma política e uma economia sem orientação da razão moral e isso provocou a derrota dos ideais ilustrados. O resultado de uma sociedade dessacralizada, que enfatiza a eficácia pragmática e o politeísmo de valores, é um sujeito individualista e narcisista (Cf. Mardones, 1988, p. 32).
A pós-modernidade trouxe consigo a crise do saber totalizador e integrador dos metarrelatos, tais como a emancipação progressiva da razão e da liberdade, o fim do trabalho alienado e o enriquecimento da humanidade através da tecnologia. Em especial, a experiência histórica da humanidade desacreditou o metarrelato ilustrado que afirmava que as verdades científicas levariam, necessariamente, a fins justos dos pontos de vista moral e político. Sem metarrelatos ficamos sem horizontes para dar sentido aos acontecimentos. O resultado prático disso é a crise de instituições permanentes que são substituídas por contratos temporais em todas as áreas. Só resta ao sujeito pósmoderno o discurso fragmentado.
Apoiando-se em Heidegger e Nietzsche, Vattimo (2002) manifesta de forma veemente a crise do projeto moderno. Para Heidegger, o humanismo se vincula e culmina na crise da metafísica ocidental que, ao esquecer a diferença ontológica entre ser e ente e privilegiar o último, originou a hegemonia da técnica moderna. Para Nietzsche, o antropocentrismo e o humanismo não passavam de fé e teísmo disfarçados. Nesse sentido, para o pós-modernismo só resta a liberdade dos sentidos e os valores relativos. Para Vattimo, o sujeito pós-moderno se vincula com o pensamento e saber de fruição cujo único objetivo é desfrutar a realidade. “Um pensamento sem critérios definitivos... um saber que se colocaria no nível de uma verdade débil” (Vattimo, 2002, p. 157).
A pós-modernidade vive o presente com ato imediato perdendo o sentido da história. A orientação normativa também se perde, pois, o que predomina é o relativismo moral do compromisso local sempre frágil. A perda dos grandes relatos nos fez pobres em sabedoria por carecer de uma guia para a vida. Na prática política moderna predomina, justamente, esse relativismo. Por trás de uma retórica ilustrada se esconde o pragmatismo político que busca um consenso carente de ética.
A revolução científica iniciada no século XVI criou um modelo de racionalidade que foi dominado pelas ciências naturais. Tal modelo global de racionalidade é totalitário na medida em que nega a racionalidade de outras formas que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Ao se tornar o modelo de racionalidade dominante, a ciência moderna, pouco a pouco, amplia seu escopo do estudo da natureza para o estudo da sociedade. A nascente ciência social se dividiu em duas vertentes principais. A corrente dominante, sujeita ao jugo positivista, consistia em aplicar ao estudo da sociedade os princípios do estudo da natureza. A segunda corrente, baseando-se na especificidade do ser humano, reivindicava para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio.
Essa segunda vertente das Ciências Sociais, ao questionar a aplicabilidade automática de métodos das ciências naturais às sociais, fornece indícios da crise do modelo de racionalidade científica nascido na Revolução Científica do século XVI. No início do século XX, Dilthey (1978) estabelece um marco importante nessas discussões: ele distingue o método da explicação – válido para os fenômenos naturais e utilizados por iluministas e, depois, por positivistas – do modelo da compreensão empregado pelas ciências do espírito. O modelo da explicação buscava estabelecer relações de causa e efeito entre os fenômenos através da pesquisa empírica. O modelo compreensivo, por sua vez, propõe captar a experiência germinal que estaria na base dos fenômenos sociais e, indo além da reconstrução histórica, objetivava-se uma interpretação ou um sentido para os mesmos.
O passo seguinte foi dado por Weber (2002) ao propor o método compreensivo como método específico para das ciências sociais. Ao invés de focar nos aspectos exteriores da ação social, o método pretendia entender o sentido das ações humanas. Embora a observação rigorosa dos fatos exigida pelas ciências naturais fosse também importante para as ciências sociais, tal procedimento não bastava para se compreender o sentido das ações humanas.
A crise do paradigma dominante fica ainda mais patente com o desenvolvimento da filosofia da ciência na década de 1960 pela Escola de Edimburgo. Teóricos como David Bloor, Barry Barnes, Steve Shapin, argumentavam que interesses políticos, econômicos, prestígio do cientista eram tão importantes quanto as evidências empíricas da pesquisa. Ou seja, fatores sociais são determinantes do sucesso ou não de uma teoria científica. Eles enfatizavam que as conclusões da observação, por estarem impregnadas dos pressupostos teóricos do pesquisador, eram fortemente afetadas pela linguagem e teorias do observador. O conhecimento científico passou a ser visto como construção social, ou seja, “as teorias científicas seriam o resultado final de um longo processo de negociação intersubjetiva entre os acadêmicos e pesquisadores que a desenvolviam” (Appolinário, 2006, p. 39).
Antes disso, já na década de 1920, a Escola de Frankfurt havia proposto um conjunto de idéias multidisciplinares que ficaram conhecidas como teoria crítica. Adorno, Marcuse e Benjamin, com forte inspiração marxista, denunciavam a estrutura ideológica que existia por trás da racionalidade científica pretendida pelo paradigma científico moderno. A ciência, ao se desconectar da realidade social, servia apenas aos interesses das classes dominantes.
A Escola de Frankfurt vai oferecer uma clarificação racional à sociedade industrializada e às conseqüências trazidas à vida humana, resultando desse intento o conceito de razão instrumental. Ao criticar a atual configuração da sociedade por considerá-la inadequada aos fins da razão, seus teóricos se remetem à gênese da razão técnico-instrumental situando-a nos séculos XVII e XVIII. Naquele momento histórico, contando com o avanço da ciência positiva e de suas aplicações técnicas, a racionalidade se propunha a emancipar o homem da opressão da natureza e instaurar uma ordem baseada nos ideais de justiça e liberdade. O pensamento iluminista tinha como programa libertar o mundo da magia através da ciência.
Ao abandonar sua autonomia, afirmavam os frankfurtianos, a razão formal se converteu em instrumento, adotando uma materialidade e cegueira que a transformava em um fetiche, mais aceito que experimentado espiritualmente. Noções como justiça, igualdade, felicidade, tolerância, consideradas em séculos anteriores inerentes à razão, perderam a instância racional autorizada para lhes outorgar um valor e as vincular a uma realidade objetiva (Cf. Horkheimer, 1973,
p. 34). A razão iluminista, ao invés de libertar, se mostrou repressiva, totalitária e reificante.
Com esse conceito, a Escola de Frankfurt critica a irracionalidade da sociedade moderna caracterizando-a como repressiva, desumana e responsável pela alienação e falta de liberdade do homem. Frente a uma razão iluminista que se apresenta como ideologia e mito, os frankfurtianos se propõem a estabelecer um conceito positivo de ilustração. Sua proposta é resgatar um conceito de razão que fundamente uma sociedade e uma dominação da natureza não repressiva. Resgatam para isso a necessidade da imaginação e da utopia para realização da transformação social.
Na década de 1960, uma segunda geração de teóricos da escola de Frankfurt passa a defender a necessidade de um novo método científico liberto das ideologias impostas pela sociedade capitalista. Habermas (1987) diferencia a lógica objetiva das ciências naturais da lógica interpretativa das ciências humanas. O motivo dessa diferenciação é que as ciências sociais tinham por objeto a sociedade e a cultura que são embasadas em símbolos. Por isso, Habermas defendia que o pensamento crítico aplicado às ciências sociais tinha a tarefa de superar a falsa dicotomia entre o saber e o fazer, entre a ciência e a sociedade. Ele vai propor, a partir da negação da objetividade e neutralidade científica, uma ciência que interviesse e transformasse a sociedade.
O complemento do processo de fundamentação da consciência humana pelo progresso científico-técnico, segundo Habermas, é uma despolitização do homem que garante o estabelecimento de uma organização científicotecnocrática. Associada a esse processo, ocorre a progressiva destruição da filosofia nas ciências. De teoria crítica da sociedade, a filosofia é reduzida à metodologia científica ou teoria da ciência, submetida, ela mesma, ao domínio tecnocrático. Habermas chama de positivismo essa dissolução da filosofia. O positivismo significaria o final da teoria do conhecimento que seria substituída por uma teoria da ciência. Em outras palavras, o positivismo nascido com as ciências modernas elimina a questão lógico-transcendental acerca das condições e sentido do conhecimento (Cf. Habermas, 1984, p. 96-99). O positivismo iguala ciência e conhecimento, elimina o sujeito do conhecimento como sistema de referência que dá sentido, substituindo-o pelo método abstrato, acredita na objetividade, suprime antigas tradições, renega a reflexão.
Mas, afinal, para que a filosofia em uma época que tendeu suprimi-la e negá-la? Enquanto a ideologia conduz a falsa consciência e a uma consciência falsa da realidade, a filosofia como pensamento crítico, longe de ser supérflua, dissipa a aparência da liberdade, mostra a coisificação reinante, se torna um asilo para a liberdade (Cf. Adorno, 1977, p. 29). A filosofia se levanta contra o objetivismo do positivismo. Enquanto forma mais radical de autorreflexão, a filosofia possui uma tarefa crítica. Indo além do interesse técnico orientado pela manipulação da natureza e do interesse prático que rege a comunicação intersubjetiva entre os homens, a filosofia crítica assume para si um interesse de emancipação. Esse interesse corresponde ao processo histórico de liberação do homem das deficiências da organização social e de suas opressões da natureza. É a partir dessa ideia que Habermas se encaminha para formulação de um novo conceito de razão: a razão comunicativa. Seu objetivo fundamental é, de um lado, que a sociedade possa assegurar-se de seus próprios fundamentos normativos, de outro, que a crítica leve a cabo sua tarefa de emancipação.
É interessante notar que por trás do “pensamento débil” (Vattimo, 2002, p. 157) da pós-modernidade e no seio de uma cultura pós-religiosa, volta-se a falar do futuro da religião. Para a tradição hermenêutica, em especial, Rorty (1997) e Vattimo (2002), a religião que pode ter relevância na atualidade é aquela que abdica de suas pretensões de universalidade e de legitimadora das soluções políticas. Uma religião que preencha a solidão das pessoas e se baseie no amor. Somente o amor pode ajudar a aceitar nossa condição fragmentada fomentando a tolerância e a caridade. Religiões que estimulam a fraternidade universal podem contribuir para o progresso moral e a organização social.
O problema desta hermenêutica é que, ao prescindir da metafísica, deixa sem solução o problema do conhecimento. Ou seja, reduz o alcance do dinamismo intencional da consciência que busca a verdade. Ao mesmo tempo, renuncia o princípio da universalidade da razão moral. Acaba, por fim, reduzindo a religião, em sua visão utilitária, a sentimentos morais. Esse reducionismo ético da religião não representa nenhum avanço em relação ao discurso racionalilustrado, ao contrário, empobrece o sentido e o significado da mesma enquanto experiência de salvação tal como crê o homem religioso. É necessária, portanto, uma hermenêutica que nos ajude a descobrir os compromissos práticos da religião na sociedade atual.
O relativismo e niilismo pós-moderno exigem a recuperação de um relato para que o ser humano possa voltar a ser o verdadeiro protagonista de sua história. É necessário recuperar as referências éticas e políticas da modernidade e construir uma nova razão integradora. Devemos conservar da ilustração sua força crítica frente ao fundamentalismo e, ao mesmo tempo, superar a razão unidimensional e o mito do progresso que legitima o imperialismo. Essa razão integral deve abarcar tanto o científico-técnico como outros níveis do simbólico, olhando mais além do que diz a ciência nascida na modernidade. Uma racionalidade ampla e respeitosa com toda a complexidade do real. Somente assim o projeto ilustrado pode ser recuperado. “Há que se recuperar o sujeito poliédrico, e fecundo em sua complexidade, que integre a razão lógico-simbólicacomunicativa com a ação e contemplação, pois todas elas são formas de inteligibilidade cognitiva” (Riesgo, 2010, p. 65).
Para Habermas, a tarefa de emancipação pode receber uma contribuição profunda da religião. Os crentes dispõem de uma fundamentação particular para abordar questões de ordem moral. As tradições religiosas, de forma geral, são fontes muito úteis de conhecimento e motivação para o entendimento mútuo. Mais do que isso, o jogo democrático pressupõe atitudes morais que são prépolíticas, entre elas, as religiosas (Cf. Habermas; Reder; Schmidt, 2009, p. 2526). Esse modo de pensar em Habermas está ligado com a perda de sentido da sociedade dita avançada. Nesse contexto é que ele propõe a recuperação da bagagem moral das tradições religiosas, tais quais justiça, liberdade, dignidade humana, etc.
Tal posição de Habermas não significa, é lógico, subestimar a importância da ilustração. O Estado liberal não necessita de supostos normativos prépolíticos como os religiosos. Para ele, o liberalismo prescinde da religião e da metafísica. O importante é que os cidadãos, enquanto agentes sociais ativos, construam a ordem democrática mediante a razão comunicativa e a prática da solidariedade. O discurso de Habermas, no entanto, não termina aqui. Sua observação sobre a degradada realidade atual faz com que ele reconheça o papel que a religião pode aportar na sociedade pós-secular. A solidariedade não pode ser imposta por decreto. Na vida prática fazem falta as virtudes morais e políticas, por isso, é conveniente que pensamento liberal-ilustrado e tradições religiosas se deixem influenciar mutuamente. A ética religiosa tem muito a aportar a ética civil. Como já insistia a filosofia da religião de Kant (apud Habermas, 2006b, p. 22), a fé em um bem supremo reforça a disposição moral do ânimo e protege contra o derrotismo. Somente a fundamentação moral não assegura o êxito da prática, e sim as motivações e os sentimentos morais. A fé pode ajudar a comunidades políticas que convivem com um sentido de solidariedade e justiça cada vez mais escassos (Cf. Habermas, 2006b, p. 123).
Para uma “modernidade desgastada” (Riesgo, 2010, p. 123) podem ser úteis certas orientações religiosas que são fontes de solidariedade e consciência moral. O Estado pós-secular e plural deve alimentar-se do diálogo entre ilustração e religião na elaboração de suas normas de convivência. Frente às limitações da ilustração, Habermas sustenta que todas as fontes culturais que alimentam a consciência normativa e a solidariedade podem ser úteis para os problemas de convivência. “Refiro-me especialmente as formas de expressão e sensibilidades suficientemente diferenciadas frente a uma vida fracassada, frente a patologias da sociedade, frente a uma vida deformada em seu conjunto” (Cf. Habermas, 2006a, p. 115-116). As religiões, Habermas reconhece, são especialmente sensíveis ao enigma do mal e do sofrimento, e, por isso, podem ajudar as pessoas a sublevar a dor, a solidão e a morte.
Do dito acima, podemos concluir que o posicionamento de Habermas conjuga uma fundamentação autônoma do Estado, vida moral e da política com a ajuda que pode aportar a cultura e espiritualidade religiosas. Todas as vozes sociais devem ser escutadas em um diálogo aberto e respeitoso entre seus protagonistas. Uma sociedade democrática e plural deve permitir a livre circulação das diversas concepções éticas e religiosas que existem na sociedade civil para, a partir do consenso e do diálogo, construir uma ética civil laica e aberta que servirá como referente para articulação de um Estado de direito. A religião, portanto, pode e deve exercer sua denúncia profética nas questões morais e políticas.
A religião, porém, pode ir além de denunciar as injustiças e criticar a desumanização e despersonalização da sociedade moderna. Se a religião se restringisse a esse papel, ela seria reduzida a sentimentos morais e empobreceria o sentido e o significado da mesma enquanto experiência de salvação. A religião também atua em outro nível do simbólico: o misticismo enquanto experiência em que nos descobrimos descobertos por Deus. Inefável é o adjetivo da experiência desse encontro direto com o divino que representa a dimensão mais profunda da vida religiosa. O processo de humanização do homem moderno necessita dessa experiência, do contrário, o homem colocará em risco sua frágil condição.
Scheler (2008) ressalta a ideia de que Deus, o ser que existe por si próprio, só pode realizar seu destino com a cooperação do homem. Por outro lado, o homem também não pode realizar seu destino sem participar dos atributos divinos de unidade, de impulso e de espírito. Deus e o homem são correlativos. Em síntese, para Scheler, é somente através do homem que Deus se autocompreende e se autorreconhece. Além disso, o homem é também o ser por meio do qual Deus pode agir e tornar sagrada sua essência. Opera-se em Scheler uma reviravolta na relação do homem com o divino: Deus não é mais o ser que apoia e guia o homem, ao contrário, o homem é o lugar onde Deus se faz concreto na terra; o homem existe para Deus. Essa nova posição de Deus exige que o mundo seja concebido como história de Deus, o lugar onde ele se manifesta. “O Deus onisciente, onipotente, infinitamente bom do teísmo está no final do devir divino, mas no início da história do mundo” (Hazan, 2008, p. 5). Ao se revelar sem revelar sua essência inefável, Deus exprime sua mensagem de compromisso com o homem e sua crença na capacidade de realização da imagem divina contida no humano. Deus busca o homem, mas, também, o homem deve responder o seu chamado.
A grande questão que se coloca na pós-modernidade é a colaboração que a esquecida sabedoria do universo religioso pode aportar. Na crise atual, certamente, os princípios éticos das grandes tradições religiosas podem ser recuperados através do diálogo. Mais do que isso, apesar de terem perdido sua vigência universal, as religiões oferecem aos indivíduos um refúgio frente à despersonalização e falta de sentido de nossa sociedade. Por fim, e paradoxalmente, a mística religiosa pode ser um elemento a nos ajudar em uma sociedade tão descrente. Não uma mística que se pretende representação absoluta de Deus, mas uma mística que fala de uma experiência em que nos descobrimos descobertos por Deus.
Pouco importa aqui a diferenciação entre a mística oriental – que privilegia a interioridade e busca alcançar a experiência espiritual de caráter absoluto – e a mística bíblica – aquela que Deus toma a iniciativa de se revelar e chamar o homem ao comprometimento com seus mandamentos. Por mais paradoxal que possa parecer, talvez possamos encontrar na experiência mística caminhos alternativos para a pós-modernidade. Uma mística que permita encontrar Deus tanto nas experiências limite de sofrimento como também nas pequenas experiências da vida cotidiana. A experiência mística pode fortalecer a subjetividade, que passa a se sentir habitada por um “fundamento originante. Na medida em que este fundamento é amor, essa mística tem uma notável capacidade humanizadora, ao implicar uma dimensão ética e um compromisso político” (Riesgo, 2010, p. 67).
A mística assim concebida pode ajudar a fortalecer a liberdade madura. A aliança entre intelecto e a dimensão espiritual pode incorporar vivências axiológicas e convicções profundas. Os místicos ensinam que o cultivo de moradas interiores nos faz mais abertos aos outros. A mística porta a comunicação, a harmonia e o consenso, propiciando o diálogo e o descobrimento de um bem maior e da verdade. Frente ao hedonismo, consumismo e falta de solidariedade pós-moderno, a religião, em especial seu aspecto místico, pode ser uma alternativa de coesão e reabilitação social. Isso não significa que a sociedade moderna deva abandonar sua neutralidade em relação às concepções religiosas, porém, sem uma abertura interior para o transcendente é praticamente impossível conceber mudanças humanizadoras em nossa sociedade.
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Recebido em 21/05/2014, revisado em 20/09/2014, aceito para publicação em 25/09/2014.
Doutor em Filosofia, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Complutense de Madrid. Professor adjunto do grupo empresarial Ibmec. Endereço: Rua Samuel Pereira 14 apartamento 1302, bairro Anchieta, Belo Horizonte, Minas Gerais, CEP 30310-550. E-mail: [email protected]
PLURA, Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 5, nº 1, 2014, p. 5-18.