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postado em: 30/7/2008
O Valor de Um Ser Humano Eu costumava encontrar-me com certa regularidade com um pastor bondoso e sábio. Muitas vezes os momentos que passávamos juntos eram tranqüilos, sem maiores acontecimentos. Mas uma tarde ficará, para sempre, marcada a ferro em minha memória. Era um dia de tempestade em Chicago, e assentei-me, encolhido de frio apesar de meu suéter de lã, bem perto de um aquecedor que assobiava. Naquele dia, fiz as perguntas. Havia lido há pouco tempo, em um artigo no boletim da igreja, que o pastor participara da libertação dos prisioneiros do campo de concentração em Dachau, ao final da II Guerra Mundial. Eu queria saber sobre a experiência dele. Ele olhou para o outro lado, e parecia focar um espaço branco na parede. Manteve-se em silêncio durante, pelo menos, 1 minuto. Seus olhos se moviam rapidamente, como se reconstruísse a cena de quarenta anos antes. Finalmente, falou e, durante os vinte minutos seguintes, recordou as visões, sons e cheiros — estes em especial — que receberam sua unidade ao marcharem através dos portões de Dachau, que ficava bem perto de Munique. Durante várias semanas os soldados ouviram rumores terríveis sobre os campos de concentração, mas, acostumados à propaganda de guerra, não deram muita confiança às conversas. Nada os preparara, e não havia nada que pudesse tê-los preparado, para o que encontraram naquele lugar. Eu e um de meus colegas recebemos a tarefa de cuidar de um vagão de carga. Dentro dele havia corpos humanos, em pilhas bem arrumadas, exatamente como a madeira que se coloca do lado de fora de casa, empilhada, que se pega depois para acender a lareira. Os alemães, sempre meticulosos, haviam planejado as pilhas, alternando cabeças e pés, e acomodando os diversos tamanhos e formatos de corpos. Nossa tarefa era como mudar mobília de lugar. Pegávamos cada corpo — tão leve! — e o carregávamos para uma áréa predeterminada. Alguns dos rapazes não conseguiram executar este trabalho. Ficavam do lado das cercas de arame farpado, vomitando. Não pude acreditar quando encontramos a primeira pessoa viva na pilha. Mas era verdade. Incrível, mas alguns daqueles defuntos não eram defuntos. Eram seres humanos. Gritamos chamando os médicos, e eles começaram a trabalhar imediatamente para salvar aqueles sobreviventes. Passei duas horas no vagão e, neste intervalo de tempo, passei por todo tipo de emoções conhecidas: fúria, pena, vergonha, enjôo: poderia dizer que senti todas as emoções negativas. Vinham em ondas, exceto a fúria. Esta permaneceu como um combustível dando forças para o trabalho. Não há palavras para descrever adequadamente a cena. Depois de levarmos os poucos sobreviventes para uma clínica improvisada, voltamos nossa atenção para os oficiais da SS responsáveis pelo Campo de Dachau, que eram mantidos sob guarda em um prédio simples ali perto. O Serviço de Inteligência do Exército estabelecera um centro de interrogatórios nas redondezas. Ficava fora do campo de concentração, e para chegar até lá era preciso descer uma colina e atravessar um bosque. O capitão pediu um voluntário para escoltar o grupo de doze prisioneiros da SS até o centro de interrogatórios, e Chuck levantou logo sua mão. Ele era um dos soldados mais fortes, impetuosos e volúveis de todo nosso grupo. Media quase 1,60m de estatura, e seus braços eram tão longos que as mãos chegavam perto dos joelhos, como as de um gorila. Era natural de Cícero, subúrbio de Chicago conhecido principalmente pelo racismo e associação com Al Capone. Chuck dizia que havia trabalhado para o criminoso antes da guerra, e nenhum de nós duvidava disto. Bem, Chuck agarrou uma metralhadora e foi cutucando o grupo de prisioneiros, para que andassem rumo à trilha. Eles andavam na frente dele, com as mãos amarradas atrás da cabeça, os cotovelos sobressaindo-se dos lados do corpo. Alguns minutos após, desaparecerem no meio das árvores e ouvimos três longas rajadas de metralhadora. Todos nos abaixamos rapidamente: poderia haver um atirador alemão escondido no bosque. Mas logo Chuck apareceu, caminhando calmamente, a fumaça ainda saindo da ponta da arma. E, com um olhar meio de lado, disse que todos os prisioneiros haviam tentado fugir. Interrompi a narrativa para perguntar se alguém comunicou às autoridades o que Chuck havia feito ou se houve alguma atitude no sentido de discipliná-lo. O pastor riu e olhou para mim com certa condescendência, como se dissesse: “Deixa de ser bobo, estávamos em guerra”. Não, e é isso que me incomodou. Naquele dia senti-me chamado por Deus para ser pastor. Primeiro, o horror dos corpos no vagão. Não consegui assimilar aquela cena. Nem ao menos sabia que existia um mal tão absoluto. Mas, quando o vi, soube, acima de qualquer dúvida, que precisava dedicar minha vida ao serviço de quem se opunha a este Mal — servindo a Deus. Depois do incidente com Chuck, sentia um medo que chegava a me deixar enjoado de que o capitão me convocasse para acompanhar o próximo grupo de soldados da SS, e pavor ainda maior porque, se fosse chamado, poderia fazer exatamente o mesmo que Chuck fizera. A besta que havia dentro deles estava também dentro de mim. Não consegui extrair mais reminiscências do pastor naquele dia. Não sei se ele vivenciara o suficiente do passado ou se sentia obrigado a discutir meus assuntos. Mas, antes de deixar a história de lado completamente, fiz uma pergunta que, hoje, parece-me bem petulante: Diga-me, depois de um chamado tão profundo para o ministério - confrontando-se com o maior mal do século -, como se sente preenchendo seus dias assentado em seu gabinete, ouvindo jovens de classe média divagar sobre seus problemas pessoais? A resposta veio rápida, como se ele se perguntasse muitas vezes a mesma coisa: Na verdade, vejo uma ligação. Sem ser melodramático, algumas vezes penso no que poderia ter acontecido se uma pessoa treinada e sensível fizesse amizade com Adolf Hitler enquanto ele ainda era jovem e impressionável, enquanto vagava pelas ruas de Viena, em seu estado de confusão. A palavra poderia ter evitado todo aquele derramamento de sangue: evitado Dachau. Nunca sei quem se assentará nesta cadeira onde você está agora. E mesmo se terminar desperdiçando minha vida com “zés-ninguém” ... Aprendi no vagão de carga que não existem “zés-ninguém”. Os corpos que encontramos com o coração ainda batendo eram o mais próximo que se pode chegar de ninguém: meros esqueletos envoltos em pele de papel. Mas eu faria qualquer coisa para manter aquelas pobres pessoas destruídas vivas. Nossos médicos passaram a noite acordados tentando salvá-las; alguns soldados de nosso grupo perderam a vida tentando libertá-las. Não existem “ninguéns”. Aprendi naquele dia em Dachau o que significa a imagem de Deus em um ser humano. Extraído de Philip Yancey, “Perguntas Que Precisam de Respostas”.