A Organização da Igreja Primitiva

A Igreja primitiva era fraternal e não havia sinais de ideologia eclesiástica de poder algum

 

 

 

Lemos em "História da Civilização" de Will Durant (Comp. Ed. Noc; SP; 1946; V; VI; III p.; I. II; pág. 276): "O cristianismo não destruiu o paganismo, mas adotou-o. O moribundo espírito grego ressurgiu na teologia e na liturgia da Igreja cristã. A língua grega, depois reinar tantos séculos sobre a Filosofia, tornou-se o veículo da literatura e do ritual cristão"

 

“Os mistérios gregos passaram-se para os mistérios da missa. Outras culturas pagãs também contribuíram para esse sincretismo. Do Egito vieram as idéias da divina Trindade, do juízo final, e da imortalidade pessoal com recompensas e castigos."

 

“Também de lá vieram a adoração da mãe e do filho e a mística teosofia que produziu o Neoplatonismo e o Gnosticismo que obscurecem o credo cristão. De lá ainda [vieram] os germes do monasticismo cristão. De Frígia veio a adoração da grande mãe. Da Síria, o drama 'da ressurreição de Adonis."

 

"Da Trácia talvez tenha vindo o culto a Dionísio, o deus que morre para salvar os homens. Da Pérsia veio a idéia do milênio, as 'idades do mundo', a conflagração final, o dualismo Deus-e-satã luz-e-trevas. Já no quarto evangelho Cristo é a luz brilhando nas trevas; uma luz que as trevas nunca apagaram."

 

"O ritual de Mitras assemelha-se tanto ao sacrifício da missa que os padres cristãos acusavam o diabo que inventara essas semelhanças com a finalidade de desnortear os espíritos fracos: como afirmavam Justino em Apologia (I, 6G) e Tertuliano em De Baptismo (5). Deste modo o cristianismo foi a última grande obra do velho mundo pagão!"

E o mais interessante de tudo é que a síntese de Will Durant é verdade histórica (para os pesquisadores - claro! Não para o povão...), mesmo que teólogos católicos e protestantes tentem negá-lo. (O problema é que se encontra um só pesquisador entre mil teólogos... Os teólogos só fazem repetir o que foi dito!).

 

Voltando a Will Durant, acho que ele esqueceu de acrescentar uma frase: "este cristianismo que vingou não é o cristianismo de Jesus Cristo, e, sim, o cristianismo dos seus vigários, moldado "ad usum Delfini".

 

Foi por isso que o grande pesquisador, o padre Altai, cujo verdadeiro nome é Mélinge, nascido em Saintonge, na França, escreveu o livro "O cristianismo de Cristo e o dos seus vigários" (Federação Espírita Brasileira; Rio de Janeiro; 1922) pois ele queria mostrar e provar que a organização religiosa e social da Igreja cristã não é obra de Jesus Cristo, mas tão somente dos seus vigários, tomados (acrescento eu) pela ideologia do poder eclesiástico que chegaram ao ponto de atribuir ao Senhor Jesus coisas que Ele nunca imaginou.

 

Veja, por exemplo, o caso das mulheres. O primeiro a maltratar as mulheres, ou porque fosse machista, ou porque fosse misógino, ou porque fosse homossexual (-efr. "Rumos"; Brasília; 1992;n°87;pag. 9) foi São Paulo apóstolo, que na primeira carta aos Coríntios (11,3) escreve:

 

"As mulheres devem conservar-se em silêncio na Igreja, ocupando um lugar discreto. Se elas querem saber algo, que o perguntem ao marido, mas em casa, porque é coisa feia a mulher falar na Igreja (...) A mulher deve cobrir a cabeça com um pano, simbolizando, assim, a sua sujeição ao homem".

 

(Observação: deste modo Paulo condenou o próprio Jesus, que andava e vinha rodeado de mulheres, como os próprios evangelhos nos contam. Veja: Uta Ranke: "Eunucos pelo reino de Deus"; Ed. Rosa dos Tempos; 1988; particularmente os capítulos VIII e IX).

 

Ao invés de condenar a exigência de Paulo, São Gerônimo exigia que as mulheres cortassem todos os cabelos por considerá-los extremamente sedutores (cartas; 93) capazes de distrair até os anjos (Tertuliano: "Contra Wlarcionem"; V, 8) que esvoaçam pela Igreja...

 

Mas apercebendo-se ser coisa muito difícil engaiolar as mulheres, então os teólogos da época inventaram toda uma série de obras de caridade onde engajavam viúvas e solteiras.

 

Foi a partir daí que nasceram as várias ordens de freiras na Igreja, sempre com a finalidade de controlá-las e usá-las ao serviço da ideologia do poder eclesiástico que até hoje permanece privilégio masculino.

 

Depois da proibição de sacrifícios aos ídolos ou à estátua do imperador, a proibição mais forte era o aborto e o infanticídio que, segundo Tertuliano ("-Apol."; IX, 8), dizimava a sociedade pagã.

 

Também os cristãos não podiam assistir aos teatros ou aos jogos do circo. Para condenar a dissolução da sociedade pagã, fazia-se do celibato e da virgindade o supremo ideal moral, tolerando-se o casamento como único meio de perpetuar a espécie, mas insistindo para que os cônjuges refreassem as relações sexuais (W.G. Sum-ner; "War and other Essays"; yale Univ, Press; 1911; pág. 54 ss).

 

O divórcio entre cristãos era proibido; só era permitido para os pagãos que quisessem casar com cristãos. Desaconselhava-se o casamento de viúvos. Condenava-se também o homossexualismo.

 

O substrato psicológico dessas estranhas atitudes era o fato que Jesus devia voltar logo, logo, nas nuvens... Então, por que apegar-se às coisas materiais?

 

Neste primeiro momento da história do cristianismo estava-se colocando as bases da moral cristã, cujo núcleo perdurará até os nossos dias no "Novo Catecismo da Igreja Universal", de autoria de João Paulo II.

 

Naqueles primeiros tempos não eram benquistos a música, os jantares sofisticados, o pão branco, os vinhos importados, os banhos quentes e o simples barbear-se (Tertuliano; "De spectaculis"; I, 3).

 

Lá pelo fim do II século começa a tomar forma a nossa missa católica. É que os pagãos acusavam os cristãos de serem ateus por não terem o "sacrifício". Como podia ser isso se até os judeus tinham o sacrifício?

 

Juntaram-se, então, idéias que vieram dos serviços do templo de Jerusalém, com idéias de purificação que vieram dos mistérios gregos, com idéias do sacrifício indireto do qual se participava pelo ato de comer alimentos sacrificados... Isso tudo intercalado com orações e cantos e com o memorial da morte de Jesus.

 

Assim nasceu a missa, onde o pão e o vinho (outrora símbolos de fraternidade na fé e na esperança da volta "nas nuvens" do Senhor Jesus) passaram a ser entendidos como “o corpo e o sangue de Jesus crucificado”.

 

Os mistérios de ísis e os mistérios de Mitra já tinham algo parecido. Deste modo não precisava de muita explicação, pois a mente daqueles cristãos já estava preparada para entender o significado do mistério eucarístico apresentado na I carta aos Coríntios (9, 23-29; e 10, 16-18).

 

Foi assim que o cristianismo se tornou a última grande religião de mistérios, com o sacramento da santa ceia.

 

Nestes primeiros tempos, o cristianismo só conhecia três sacramentos (entendendo por sacramento, algo que dá ao indivíduo uma graça especial); o batismo, a santa ceia, e a ordenação dos presbíteros.

 

Os atos dos apóstolos nos relatam (8, 14-17 e 19, 1-6) a imposição das mãos que passou a ser privilégio exclusivo dos bispos. A extrema-unção foi tirada da carta de Tiago (5, 14) como a forma do último perdão.

 

A descoberta dos sacramentos foi o momento mais importante para a realização dos presbíteros como corpo jurídico e para a sua atuação jurídica sobre o grupo dos cristãos.

 

Já Clemente romano havia feito uma distinção entre leigos ("lai-kos", em grego, que deriva de "laós", povo em geral) e os cristãos consagrados para uma tarefa específica ("klérikos", em grego, do verbo "Kleróo", eleger, designar para tarefas especiais).

 

Qual tarefa? A condução da assembléia ("eklésia") dando-lhe meios para receber a graça de Deus: estes meios são os sacramentos que só os "klerikói" poderiam manusear. (Cfr: I. De Lo Potterie Jesuí-ta),que esclarece isso muito bem em: "N. R. Th."; LXXX; 1958; pg. 840 ss; no artigo: L'origine et le sens primitif du mot Laic).

 

Deste modo, os sacramentos se tornariam a matéria fundamental da ideologia do poder eclesiástico, porque com os sacramentos a vida espiritual dos cristãos estava nas mãos da hierarquia eclesiástica. Só escapava o casamento... E não foi fácil apoderar-se desta instituição de direito natural!

 

Mas finalmente a Igreja conseguiu, e foi justamente o bispo de Roma. Desde o começo valia a afirmação de Ulpiano, falecido em 228 d.C, que "é o consentimento que faz autênticas as núpcias".

 

Esta sentença passará para o Digesto de Justiniano (50, 17, 30) assim: "Nuptias non concubitus sed consensus facit".

 

O matrimônio era do Direito Civil; por isso o autor da "Epístola a Diogneto", no começo do III século, escrevia que "os cristãos se casam como os outros cidadãos" (5,6; veja: H. I. Marron; Ed. Du Cerf; 1951; pg. 62-63).

 

Mas eis que aparece logo um bispo, Inácio de Antioquia que escreve: "Convém aos homens e às mulheres que se casam, contrair a sua união com o conhecimento do bispo" ("De Inst. Virg."; 6. P.L. 16; col. 330).

 

De passo em passo chegamos a Pedro Lombardo (século XII) que conseguiu mostrar ser o casamento um sacramento, e mais tarde o Concilio de Trento (séc. XVI) definiu ser isso um dogma de fé católica. (Denziger: 791).

 

A ideologia do poder eclesiástico foi tão longe que em 1954 o papa João XXIII, para mostrar seu poder sobre os sacramentos e, em particular sobre o casamento, anulou o matrimônio legítimo de dois pagãos que continuaram a viver no paganismo!

 

Tão longe foi a ideologia do poder eclesiástico!

 

 

Continua na próxima postagem desta seção...

 

 

Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES

 

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.

 

 

Observação: Mantida a formatação original em todos os artigos, apenas os destaques visuais são por conta deste site.

 

 

Nota do IASD Em Foco

 

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