Todo o Poder aos Bispos!

A ideologia do poder eclesiástico romano começa com Clemente I, bispo de Roma

 

 

 

A tradição atribui ao bispo de Roma, Clemente 1, toda uma série de escritos sobre a doutrina e sobre a disciplina cristã, e a mesma tradição diz que foi Clemente I que teve a idéia de reunir todos esses escritos de caráter eclesiástico juntamente com a memória referente ao apóstolo Pedro.

 

(Atenção: trata-se de tradição e não de provas históricas objetivas!).

 

Também quando alguém quis redigir as famosas "Constitutiones Apostólicas", diz a tradição que foi Clemente I quem se incumbiu da tarefa. Parimente, quando Hermes escreveu o "Pastor", é novamente Clemente que manda todos os livros cristãos aparecidos em Roma, aos outros bispos, pressionando-os a aceitá-los.

 

Este verbo "pressionando-os" é bastante forte, mas exprime bem o estilo do missivista romano (fosse quem fosse!). Com efeito, tudo o que Clemente escreveu (supondo que seja ele o autor) tem um estilo autoritário: é com autoridade que, a cada página, ele recomenda que se obedeça à hierarquia eclesiástica, isto é, padres e bispos.

 

Sente-se que Clemente é bispo em Roma, a cidade imperial que reflete seu poder naquela igreja, cujo chefe e senhor é o bispo. Dizem alguns historiadores que Clemente era da família Flavia, que já deu três imperadores: Vespasiano, Tito e Domiciano e, portanto, carregava no sangue o autoritarismo... Se isso fosse verdade, seria explicado seu estilo de escrever, pois escreve como o comandante-chefe.

 

Na sua carta aos Coríntios, há um trecho que nos diz tudo: "Olhemos os soldados que servem os nossos soberanos; com que ordem, com que pontualidade, com que submissão executam o que lhes é comandado"!!! "Com que submissão"!

 

Segundo uma linha histórica ininterrupta de dois mil anos, chegamos ao ano de 1937, quando Pier Costante Righini, diretor nacional da Juventude Católica Italiana, me levou a Roma para ver o Papa.

 

Eu tinha 13 anos e não entendia nada do que Pio XII dizia, a não ser uma frase que até hoje ressoa na minha memória: "A igreja não precisa de gente que pensa: ela precisa de gente que obedeça".

 

É a submissão de que fala Clemente, bispo de Roma!

 

Para Clemente, o exército romano é o único modelo de como deve ser a Igreja Cristã: obedecer, cada um em seu lugar. Obedecer a quem? Aos bispos, claro!

 

A palavra obedecer era muito forte numa época em que as comunidades unidas ao redor de seus "presbíteros" formavam uma família que ainda se reunia no cômodo mais amplo de uma casa.

 

Houve muitos protestos de bispos. Só de bispos. A comunidade havia colocado sua autoridade nas mãos dos anciãos (presbíteros), mas o corpo presbiterial já se resumia numa só pessoa: o bispo.

 

(Mais tarde, os bispos irão aniquilar-se numa só pessoa: o papa - mas ainda faltarão alguns séculos).

 

Deste modo, parece claro que a criação do poder episcopal é obra do segundo século, já que a absorção da Igreja pelos presbí¬teros aconteceu antes do fim do primeiro século.

Outra coisa que intriga na carta de Clemente é a idéia de que o presbiterado é anterior ao povo cristão. Lemos ainda na carta de Clemente: "Todos os órgãos do corpo conspiram e obedecem a um princípio fixo de subordinação pela conservação do todo".

 

E assim nasceu o conceito jurídico de hierarquia eclesiástica, fundamentado na exigência da "conservação do todo", algo que nem São Paulo imaginava quando fez o elenco dos carismas entre os cristãos.

 

Assim, a idéia de São Paulo (que sempre se sentiu livre e independente perante os apóstolos), como, de resto, a idéia de Jesus, isto é, de uma assembléia (Igreja) de gente livre, parecia agora uma utopia anárquica inútil para o futuro.

 

Bem escrevia Renan em "As origens do cristianismo"; v.5°; pág. 183: "Com a liberdade evangélica havia a desordem, mas não se previu que, com a hierarquia, ter-se-ia no futuro a uniformidade e a morte".

 

Mesmo colocando-se alguns bispos contra as idéias de Clemente, não conseguiram impedir o alastramento de suas idéias contidas na sua carta.

 

Apareceram então, por volta do ano 170 d.C, uma serie de cartas (de Inácio?) que ansiavam pela organização da autoridade episcopal.

 

Fazia tempo que os bispos sentiam a necessidade de organizar-se, já que Jesus não voltava "nas nuvens" como havia prometido (ou como eles imaginavam que Ele tivesse prometido).

 

Uma família composta de uma dúzia de pessoas consegue organizar-se no amor. Mas uma dúzia de famílias só dá certo quando houver uma organização clara e definida.

 

Traduzindo este conceito em termos eclesiásticos, significa que, se os poderes dos bispos e dos presbíteros emanassem da própria assembléia dos fiéis, a Igreja perderia seu caráter de hierarquia teocrática.

 

E assim, aos poucos, sem solavancos psíquicos ou sociais, o clero falará em nome do Senhor Jesus à assembléia e em nome da assembléia ao Senhor Jesus... e ninguém se apercebeu, lá no segundo século, que agora quem mandava era o bispo e não o Senhor Jesus.

 

É o que acontece todo dia num condomínio em que os proprietários delegam ao síndico todo o serviço do prédio, dando graças a Deus que haja alguém para a tarefa. O voto deliberativo torna-se voto simbólico, até o dia em que não há mais nada para votar, pois o sindico "é pessoa de confiança" e "sabe o que faz" e, de fato, agora é ele que faz tudo.

 

Então surgiu o costume de os presbíteros e de os epíscopos sentarem no primeiro lugar. Depois veio a idéia de colocar um ou dois estrados debaixo da cadeira episcopal “unicamente para poder ver o rosto de todos os fiéis”. Depois a cadeira foi substituída pelo trono episcopal.

 

Paulo de Samosata, bispo de Antioquia, foi o primeiro a usar esse trono com o dossel e o bispo de Roma começou a colocar ao lado de seu nome a palavrinha "pa. pa." que significa "pater patrum', ou seja, pai dos pais, pastor dos pastores, bispo dos bispos.

 

Isso foi em 389 com o bispo de Roma Sirício e com a permissão do imperador Teodósio. Enquanto isso, estabeleceu-se que só o bispo podia celebrar a santa ceia, segundo uma carta de Ireneu ao bispo de Roma Vitor (Eusébio; "-Hist. Ecles."; V; XXIV; 17).

 

Então, o bispo foi o único "Senhor" (dominus) da Igreja local, tendo ao seu lado um conselho de presbíteros e de diáconos.

O que valia agora não era mais a comunidade dos fiéis que o havia eleito, mas a imposição das mãos que lhe dava o título e a herança apostólica de "epíscopo" (bispo).

Hegesipo é um escritor cristão que, na segunda metade do II século, escreveu sobre as origens do cristianismo. Ele nos interessa muito porque nas suas viagens, ele só procura e interroga os bispos: para ele, a Igreja é só o bispo (veja: Eusébio; "Hist. Ecl"; IV; XXII; 1-3); não o bispo de Roma, mas cada bispo em sua Igreja. Hegesipo sabia que agora não existia mais a primitiva igualdade cristã, mas que a Igreja era propriedade de um "dominus" chamado bispo.

 

E, na verdade, por quanto este novo cristianismo pareça antidemocrático, será esta nova organização que disciplinará a anarquia, pois colocará cada bispo em sua diocese com todo o poder.

 

Jesus havia inoculado em seus discípulos o espírito de fraternidade, onde todos estavam dispostos a renunciar às suas idéias e desejos de serem os primeiros no "reino". Jesus havia repetido que "o primeiro de vós, seja o servidor de todos". Com o bispo de Roma, Clemente I, tudo isto foi deixado de lado para alcançar a organização necessária para impor-se ao mundo pagão.

 

Clemente I (Epist. I; c. 42-44) considera o episcopado como sendo o único herdeiro dos poderes apostólicos. Deste modo, com ele começa a ideologia do poder eclesiástico, uma vez que os sacramentos e a graça divina que eles conferem são privilégios que o Céu deposita nas mãos da hierarquia eclesiástica.

 

Foram as Igrejas paulinas que pegaram logo esta ideologia. Trechos das cartas de São Paulo eram agora interpretados como uma premissa da constituição da hierarquia, uma vez que freqüentemente insistiam no respeito pela autoridade dos presbíteros.

 

Então inventaram-se mais três epístolas: a Tito e a Timóteo, que foram atribuídas a São Paulo, para fundamentar a ideologia do poder eclesiástico.

São três pequenos tratados sobre os deveres eclesiásticos e sobre a grandeza do episcopado: "grande coisa é o episcopado!" (I Tim. 3 e Tito, 1).

 

Clemente I encontrou aqui tudo aquilo que estava procurando, sob o selo e a garantia da divina inspiração. As Igrejas judeu-cristãs (sabemos pela História) tornaram-se quase uma sinagoga e nelas o clericalismo não deitou raízes.

 

Mas já não é o caso da Igreia de Roma, na primeira metade do III século, quase logo após o "reinado" de Clemente I: "No ano de 248, a Igreja de Roma dispõe de um clero de 155 membros e mantém cerca de 1.500 viúvas e pobres.

 

Tal grupo, independentemente dos religiosos regulares, é tão numeroso como a mais importante corporação da cidade. E, na verdade, um grupo enorme, numa cidade em que as agremiações culturais e as confrarias funerárias contam seus membros às dúzias.

 

Mais revelador, talvez, o papa Cornélio apresenta essas estatísticas impressionantes como uma das justificações de seu direito a ser considerado o bispo da cidade.

 

(...) É a essa Igreja conduzida com firmeza por tais dirigentes que Constantino, em 312, confere uma posição inteiramente pública, que se revelará decisiva e irreversível ao longo do século IV". (V.V.A.A.; "História da vida privada"; Comp. das Letras; 58; 1990; V.I.; pg. 260).

 

 

Continua na próxima postagem desta seção...

 

 

Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES

 

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.

 

 

 

 

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