A Papisa Joana e Outras Sacerdotisas

Se a ideologia do poder eclesiástico não fosse uma história de machos, haveria um bom lugar para Joana

 

 

Foi um monge irlandês, Marianus Scotus (1028-1086) que escreveu, primeiro, a vida da papisa Joana. Esse monge irlandês passou os últimos 17 anos de sua vida na abadia de Mainz, a mesma cidade alemã que cerca de 200 anos antes, viu nascer Joana.

 

Marianus escreveu "História sui temporis clara'', que podemos encontrar em "Rerum Germanicarum Scriptores aliquot insignes", na edição de J. Pistorius, do ano de 1725.

 

Referindo-se ao ano de 854, Marianus escreve: “o papa Leão morreu nas kalendas de agosto e foi sucedido por Joana, uma mulher, que reinou durante dois anos, cinco meses e quatro dias".

 

Um outro historiador, Martinus Polonus, padre da Ordem Dominicana, que nasceu em Troppan (Polônia) no século XIII mas viveu o resto de sua vida em Roma como capelão e penitenciário papal, escreveu: "Chronica Pontificoram et Imperatorum", que podemos encontrar em "Monumenta Germaniae Histórica", da editora J. Pistorius, do ano de 1725.

 

Nessa "Chronica" lemos: "Depois do papa Leão veio João Anglius, nascido em Mainz, que foi papa durante dois anos, sete meses e quatro dias e morreu em Roma após o que houve uma vacân¬cia no papado por um mês."

 

"Afirma-se que esse João era uma mulher que, quando moça, fora levada a Atenas vestida com roupa de homem, por certo amante seu. Lá se tomou proficiente numa grande diversidade de conhecimentos ao ponto de não ter igual. Posteriormente foi a Roma, onde ensinou as artes liberais e teve grandes mestres entre os seus alunos."

 

"Pelo seu grande saber e pela sua vida, foi por todos escolhida como papa. Mas quando papa, foi engravidada por seu segundo amante. Por ignorância do tempo exato em que era esperado o nascimento, quando estava numa procissão do São Pedro até Latrão, deu à luz um filho em uma estreita viela entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente."

 

"Dizem que a criança foi enterrada naquele mesmo lugar. O senhor papa sempre se desvia daquela rua abominável. Esta Joana não foi colocada entre a listados santos pontífices, tanto por causa do sexo feminino quanto devido à sordidéz do caso'.

 

Este é o registro de Martinus Polonus. Mas há muitos outros historiadores que confirmam a história, como Sigebert de Gemblours, monge beneditino (1030-1113) que escreveu "Chronica", editada por Pistorius em 1725.

 

Escreve ele: “Houve rumores de que esse João era uma mulher e era conhecida como tal apenas por um companheiro que teve relações com ela e a deixou grávida. Ela deu à luz quando era papa. Por isso alguns historiadores não a incluem na lista dos papas".

 

Outro historiador que fala da papisa Joana é Otto, bispo de Frisingen (Alemanha), parente dos imperadores do sagrado romano império, que morreu em 1258 depois de ter escrito sete livros de Chronicas.

 

“Há uma interrogação a respeito de um certo papa, ou melhor, papisa, que não é incluído na lista dos papas de Roma porque era uma mulher que se disfarçava de homem. Um dia, quando montava a cavalo, deu à luz uma criança”.

 

Outro historiador que fala da papisa Joana é Gotfrid de Viterbo, capelão e secretário da Corte Imperial que escreveu no "Pantheon", no ano 1185, a seguinte observação: "Joana, a papisa, não é contada depois de Leão IV".

 

Também o dominicano; Jean de Mailly, de Metz (França), que escreveu "Chronica Universalis Mettensis" no ano de 1250. Escrevendo sobre os acontecimentos do ano de 1099, diz:

"Há uma interrogação a respeito de um certo papa, ou melhor, papisa, que não é incluído na lista dos papas de Roma porque era uma mulher que se disfarçava de homem e a motivo de seus grandes talentos tornou-se secretário curial, cardeal e papa. Um dia,quando montava a cavalo, deu à luz uma criança".

 

Outro historiador é o frade dominicano francês Estevão de Bourbon, que morreu em 1261 e relata o mesmo caso.

Naturalmente todos os sucessivos escritores católicos a partir de. 1500 negaram o fato encontrando nos textos acima dezenas de inverdades históricas, de textos omissos, de textos adulterados... (Quem estaria interessado a adulterar os textos?... Os historiadores eram [ todos eles] eclesiásticos...).

 

Antes de considerar os quatro elementos históricos que provam a existência da papisa Joana, vejamos quem é este Marianus Scotus que (parece) foi o primeiro a relatar o caso.

 

Se Marianus Scotus tivesse inventado essa história certamente Gregório VII, o mais apaixonado defensor dos bispos de Roma, de sua santidade e infalibilidade, jamais teria permitido que se introduzisse nas "Chronicas" este fato; o mesmo pode-se dizer de Victor III, Urbano II e Pascoal II, todos contemporâneos de Marianus Scotus.

 

O mesmo pode-se dizer do célebre abade Alberico de Monte Cassino, tão devotado dos bispos de Roma e tão defensor de sua autoridade.

 

Todos os escritores católicos concordam que Marianus Scotus era um escritor imparcial e sua reputação era tal que não só a Escócia (sua pátria) mas, também, a Alemanha e a Inglaterra reclamavam a honra de seu nascimento.

 

Também nunca ninguém duvidou de sua dedicação à Santa Sé. Prova disso é que ele defendeu Gregório VII contra o imperador Henrique IV. Durante toda a sua vida a serviço dos bispos de Roma, nenhum historiador católico encontra motivos para declará-lo mentiroso.

 

Mas quando alguns escritores católicos, sobretudo jesuítas, quiseram mostrar que Joana nunca existiu, então começou uma guerra feroz, ainda mais que nela tomaram parte numerosos historiadores protestantes entre os anos de 1500 e1600.

 

O leitor que gostaria de ler algo de imparcial e ter uma extensa bibliografia sobre o assunto pode ler: "A papisa Joana" de Rosemary e Darroll Perdoe; (Ibrasa: São Paulo: 1990. Biblioteca Histórica, etc; vol. 38).

 

Mas apesar de todos os esforços para negar os fatos, temos até hoje quatro argumentos para suspeitar, com fundamento, que a história da papisa Joana seja verdadeira.

 

Primeiro argumento: a rua evitada. Durante toda a alta e baixa Idade Média eram quase diárias as idas e vindas do palácio do Latrão (e residência oficial dos papas) à catedral de São Pedro. Essas procissões eram sempre feitas por um caminho direto.

 

Acontece justamente que a partir do ano em que a papisa Joana deu à luz, este caminho foi constantemente evitado ainda mais que no lugar do funesto acontecimento havia uma estátua da papisa.

 

Em 1486, o bispo-mestre-de-cerimònias-pontifícias, John Burchard, escreveu que Inocêncio VIII "na ida e na volta passou casualmente por aquela rua onde.está localizada a estátua da papisa Joana como sinal de que João VTI Anglicus lá deu à luz uma criança. É por este motivo que não é permitido mais aos papas passar lá a cavalo" (John Burchard; "Liber Notarum"; em "Rerum Ibalicarum Scriptores"; Ed. L. A. Muratori).

 

 

Segundo argumento: a pedra memorial. Havia uma pedra que o historiador Estevão de Bourbon diz que "era fora da cidade", que continha uma inscrição alternativa que Estevão de Bourbon interpreta assim: "Parce Pater Patrum, Papissae Proditum Partum": muito clara alusão ao parto da papisa Joana!

 

Terceiro argumento: a estátua: por volta do ano 1375, quando apareceu "Mirabilia Urbis Romae", sabia-se como dado de fato comum, a existência de uma estátua que representava uma mulher com manto, coroa e cetro pontifício, segurando uma criança.

 

Todos sabiam que representava a papisa Joana. Até Lutero viu esta estatua e achou impróprio deixá-la no lugar. (Ver: "La statua delia papessa Joana" em "Bollettino della Commissione Arqueológica Comunale di Roma"; XXXV; 1907; pág. 82-95).

 

Quarto argumento: a cadeira furada, onde a partir de Benedito III (855-858) os bispos de Roma, já eleitos, deviam sentar-se antes da consagração, para que apósitos diáconos se certificassem, pelo tato, que eram de sexo masculino.

 

O uso da cadeira furada terminou no século XVI. E agora, o que dizer? Primeiro: Joana não foi, a primeira mulher a usar vestes sacerdotais/episcopais. Sabemos pela história, que Santa Tecla, vestida de homem, acompanhou São Paulo em todas as suas viagens. Sabemos que uma tal de Margarida, vestida de padre, entrou num convento masculino com o nome de frei Pelágio.

 

Sabemos que Eugênia, filha de Filipe, governador de Alexandria, no tempo do imperador Galliano, dirigia um convento de frades. A "Chronica de Lombardia", escrita 30 anos após a morte de Leão

IV, nos conta de uma mulher que foi patriarca de Constantinopla.

 

De resto sabemos que até ò século III existiam, entre os cristãos; as sacerdotisas, pois as atas do Concílio de Calcedônia dizem que as mulheres podiam receber todas as ordens sacras como os clérigos.

 

São Clemente Alexandrino, numa epístola, fala longamente sobre as funções das sacerdotisas: celebrar os mistérios; pregar o evangelho; ministrar o batismo. Atton, bispo de Verceil, refere-se nos seus escritos aos trabalhos das sacerdotisas na Igreja primitiva: elas eram tão importantes que tinham sob suas ordens muitas diaconisas. Também Anastásio, bispo de Alexandria, e São Cipriano falam das sacerdotisas irresponsáveis.

 

Como se vê, havia antecedentes históricos proibidos de serem mencionados entre os católicos porque a ideologia do poder eclesiástico é uma história de machos...

 

Autor: Carlo Bússola, professor aposentado de Filosofia da UFES

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.