De Adriano II a Adriano III

O cristianismo deve ser realmente divino, se nem os papas dessas épocas conseguiram acabar com ele!

 

Adriano II sucedeu a Ni­colau I em 867. Tinha mu­lher e uma filha. Criado no Palácio do Latrão, se tornou bemquisto por todos os papas. Anastasio o Biblio­tecário, que foi homem de confian­ça de Nicolau I, nos deixou escri­to: "Temos um novo papa cha­mado Adriano, homem venerá­vel pela santidade de sua vida, casado com uma mulher chama­da Estefânia e pai de uma filha de notável beleza. (...) Ainda não sa­bemos qual será seu modo de go­vernar a Igreja".

 

Acontece que o bispo Arsênio tinha um filho chamado Eleutério, que era admitido na família de Adriano. Eleutério se apaixonou perdidamente pela filha do pon­tífice e, uma noite, raptou-a e fu­giu juntamente com a mãe dela pa­ra um castelo perto de Pavia.

 

O bispo Arsênio ficou deses­perado, pois sabia qual seria a vingança de Adriano II. Assim, doou metade de suas imensas ri­quezas à mulher do imperador Luis para obter tropas que defendessem seu filho. Mas o bispo Arsênio lo­go morreu e Eleutério ficou sem amigos. Desesperado, matou a sua jovem mulher, filha de Adriano II, e também a sogra Estefânia. Foi preso e decapitado por ordem do imperador Luís e todos seus bens e os bens do pai foram divididos entre o imperador e a Santa Sé.

 

Adriano II passou o resto de seus dias entre intrigas políticas, tanto no Ocidente, como no Oriente, sem nada conseguir de útil para a Sé de Roma, porque, apesar de con­denar Fócio no Concílio de 869, perdeu todo o povo dos búlgaros que entrou para a Igreja de Cons­tantinopla.

 

Esse IV Concílio de Constanti­nopla de 869-70 teria feito enver­gonhar o falecido Nicolau I de Roma, porque os cânones 13°, 17D, 21° e 26° continuavam a divi­dir a Igreja Universal entre os cin­co grandes patriarcados de Bisâncio, Alexandria, Antioquia, Jeru­salém e Roma e se nesse concílio o bispo de Roma era homenagea­do como "primus inter pares" era somente pelo respeito devido à an­tiga capital do império.

 

Aliás, o mesmo concílio estabelecia que a sentença definitiva, nas causas eclesiais, era de direito e dever do bispo-patriarca de cada patriarcado.

 

Mas, como na Europa só havia o patriarcado de Roma, entende­mos por qual motivo os bispos de Roma se projetaram em toda a história européia absorvendo des­te modo todo o cris­tianismo europeu e produzindo, até hoje, a visão dis­torcida de que o cris­tianismo de Cristo é o cristianismo de Ro­ma: o que, historica­mente, é uma grande mentira!

 

Nada se pode en­tender de cristianismo romanamente institucionalizado, se não se entender este pro­cesso histórico do cristianismo europeu. Afirmar, como afir­mam os teólogos ro­manos, que Jesus fun­dou uma Igreja (e não muitas igrejas) e que esta Igreja é a Sé de Ro­ma, é falsificar a história, ou é um atentado de ignorân­cia por desconhecer a histó­ria. [Nota dos Editores: Quem escreveu isso, como mostra logo abaixo, é um catedrático, estudioso, pesquisador e católico sincero – não um herege ou inimigo da Igreja Católica Romana. Aqueles que quiserem contestá-lo, já que os seus registros são fiéis à História, terão que, antes, contestar a própria História.]

 

Quando o meu velho pro­fessor de História Eclesiásti­ca, lá, naquele quarto escuro e poeirento, cheio de livros até de­baixo da cama, me disse baixi­nho as idéias que acabo de escre­ver, eu jurei que nunca mais iria conversar com ele, porque tive me­do de estar na frente de um heré­tico dissimulado em padre católi­co ainda mais que sua mesa esta­va cheia de cartas de bispos orto­doxos, luteranos e anglicanos.

 

Mas quando no Líbano pude conferenciar com o arcebispo Eftímios de Zahlé, com o cardeal Agajanian, armeno, e com o patriarca de Damasco e, depois, nos meses que fiquei no Cairo, com o vene­rável patriarca Copto... Então, entendi que em 869-70 não se confirmou nenhum pri­mado romano, mas simplesmen­te uma adesão a Nicolau I e Adria­no II pela participação deles no conflito entre o patriarca Inácio e Fócio.

 

Foi no Líbano e no Egito que eu constatei como os teólogos ro­manos modificaram o sentido do Concílio Ecumênico Constantino-politano IV, e disto tenho até o trecho do documento em língua latina que guardo comigo desde o ano de 1953. Eis o documento:

"Beatissimum patriarcam Nicolaum tamquam organum Sancti Spirirus necnon et sanctissímum patriarcam Adrianum.sucessorem eius, definimus atque sancimus etiam quae ab eis sinodice per di­versa tempora exposita sunt et promulgata... etc", que traduzido para o português significa:

 

"Considerando como órgão do Espírito Santo o bea­tíssimo patriarca Ni­colau e seu su­cessor o san­tíssimo patriarca Adriano, definimos e estabelecemos que quanto por eles foi sinodicamen­te exposto e promulgado em diver­sas ocasiões, tanto em defesa e sus­tentação da Igreja de Constanti­nopla e seu pontífice o patriarca Inácio, como para a expulsão e con­denação de Fócio, leigo e usurpa­dor, há de se cumprir e guardar para sempre inteiro e ileso nos termos estabelecidos".

 

Este é o cânon n° 2 do Concílio ecumênico e é apenas um ato de adesão às Igrejas do Ocidente na pessoa do patriarca de Roma. Ora, é anti-histórico pensar que es­te cânon n0 2 reconheça o prima­do de Roma! Anti-histórico, falso e mentiroso.

 

Finalmente Adriano II faleceu. Era o ano de 872.

 

Sucedeu-lhe João VIII. Certa­mente nenhum bispo de Roma havia-se envolvido, até então, com tantas intrigas políticas com reis, príncipes e imperadores, jurando fidelidade ora a um, ora a outro, enquanto os traía a todos!!! Ler a vida desse João VIII dá para en­tender como o cristianismo é di­vino... Porque nem mesmo os bispos romanos conseguiram aca­bar com ele!

 

Em tudo e sempre João VIII vi­sava às suas terras e o tal de "Pa­trimônio de São Pedro", que nes­ta época abrangia quase toda a Itália dando um fabuloso lucro de impostos sem nenhum dever social em troca!

 

Depois da morte de Luís, João VIII resolveu escolher Carlos, o Calvo, como protetor da Santa Sé. Como se vê há nos bispos de Ro­ma destas épocas uma insta­bilidade política contínua, com a finalidade única de al­cançar e segurar o poder político.

 

Mas aqui vai uma per­gunta pertinente: Porque os bispos de Roma não procuraram defensores na Itália? Por exemplo, os senhores de Nápoli, Benevento ou de Veneza, que eram bem mais perto de Roma e poderosos em armas? É que os bispos de Roma, fazia décadas e décadas, aspira­vam à dominação absoluta de to­da a Itália e, portanto, procura­vam a amizade dos príncipes que governavam países além dos Al­pes; enfim, príncipes estrangei­ros...

 

Finalmente, Carlos, o Calvo, veio a Roma e foi coroado imperador por João VIII, que lhe disse entre uma saudação e outra: "nunca se esoueça que os bispos de Roma têm o direito divino de outorgar im­périos!".

 

O historiador Sigônius, que nos relata esta coroação, nos diz: "O império era então um simples feudo da Santa Sé, pois até o rei­nado de um imperador só se cos­tumava contar a partir do dia da sua coroação pelo bispo de Roma".

 

O historiador Maimbourg (je­suíta francês; 1610-1686) relata que João VIII reuniu um concílio de bispos e nobres do império ociden­tal para esclarecer que Carlos, o Cal­vo, tinha subido ao poder impe­rial não por direito de sucessão, mas por eleição eclesiástica!

 

Mas naquele tempo a praga mais séria era constituída pelas inva­sões dos sarracenos que freqüen­temente chegavam até os muros de Roma. E, no entanto, Carlos o Calvo nunca se importou muito com isso e deixou que João VIII se virasse sozinho.

De sua parte, lá na França, ele convocou um sínodo para afir­mar perante os bispos e demais dignitários a sua própria autori­dade e também a autoridade do bispo de Roma nos territórios da França.

 

Naturalmente os bispos fran­ceses se rebelaram contra Roma, pois consideravam aquilo um gol­pe na liberdade da Igreja gallicana. Começaram as batalhas ver­bais: a França contra Roma; Ro­ma contra a França; e Roma con­tra os príncipes italianos que tentavam reconquistar a sua liber­dade.

 

A vantagem nesses jogos polí­ticos era que faltando rádio e te­lefones, as notícias chegavam atra­sadas, freqüentemente desvirtua­das, ou se perdiam no caminho e então o fogo se apagava.

 

Por esta época Inácio, patriar­ca de Constantinopla, faleceu e Fó­cio voltou a suceder-lhe: Fócio, o excomungado pelo bispo de Ro­ma e seu inimigo implacável!

 

Então convocou logo um concílio, reunindo cerca de 400 bis­pos que condenaram os bispos de Roma Nicolau I e Adriano II co­mo autores de todas as perturba­ções das Igrejas Ocidentais - e fo­ram excomungados e anatemati­zados.

 

Em seguida tiraram do "Cre­do" (o "Símbolo de Nicéia") a fra­se "Filioque" que havia sido in­troduzida a pedido do bispo de Roma no tempo do então patriarca Inácio.

 

Até os dias de hoje - século XX - este é o ponto de discórdia da Igreja Ocidental com a Igreja Orien­tal. Outro ponto é que a Igreja Orien­tal não aceita a supremacia uni­versal (o primado] do bispo de Roma por não ter fundamentos his­tóricos verdadeiros, e muito me­nos fundamentos teológicos.

 

Finalmente, depois de ter luta­do contra todos, todos os dias, João VIII faleceu, aos 18 de dezembro de 882.

 

Se os Anais da Abadia de Fulda nos contam a verdade, João VIII teria sido envenenado pe­los parentes de uma nobre senho­ra romana de quem ele teria rou­bado o marido... E como o vene­no demorava a funcionar, teriam-lhe quebrado a cabeça a marteladas.

 

Sucedeu-lhe Martinho II (882-884), figura totalmente inexpres­siva. Então foi eleito Adriano III (884-885), que nada soube fazer a não ser excomungar Fócio.

 

Mas lá em Constantinopla ninguém mais se importava com o bispo de Roma e suas ambições políticas, pois era apenas consi­derado um patriarca petulante.

 

A Igreja romana venera Adria­no III como santo.

 

Autor: Carlo Bússola, professor aposentado de Filosofia da UFES

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.